Maria Lacerda de Moura e o Feminismo Classista

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Na última década da República Velha, era evidente o desencanto pelo que tal república não chegou a ser. O modelo constitucional de 1891, a descentralização política e a autonomia dos governos locais eram duramente criticados. Assim, o ambiente intelectual dos anos 20 apresentava-se rico em manifestações que sugeriam a necessidade de transformações na vida brasileira. O ano de 1922 é um marco simbólico desse período: ocorre o centenário da Independência, a fundação do Partido Comunista Brasileiro, a realização da Semana de Arte Moderna, a primeira rebelião tenentista, a Fundação do Centro Dom Vital e a institucionalização do movimento de mulheres, todos compondo manifestações de diferentes vertentes de um estado de inquietação que predispunha a mudanças.

“A crescente urbanização e a especialização em inúmeras áreas de produção econômica e de educação proporcionam à mulher oportunidades de diversificação profissional, tempo e necessidade de interromper os deveres absorventes relacionados aos cuidados com a família para refletir e participar de questionamentos sobre seus papéis e direitos na vida social”1.

O Brasil, que passa de uma estrutura agrária atrasada a uma incipiente, mas progressiva, industrialização, é o Brasil dos feminismos conflitantes de Bertha Lutz e de Maria Lacerda de Moura, e pelo feminismo “inquieto” e inquietante de Pagu2.

Em 1919, Bertha Lutz (1894-1976), chega a São Paulo, recém-vinda de Paris, onde se formou em biologia na Universidade de Sorbonne. Na França, percebeu a necessidade da luta sufragista no Brasil. Maria Lacerda de Moura (1887-1945) também chega de viagem. Vem lá do interior das suas Minas Gerais para São Paulo. Também sente que precisa fazer “alguma coisa” pelas mulheres.

Maria Lacerda de Moura nasceu em Manhuaçu e mudou-se aos cinco anos com seus pais para Barbacena, ambas cidades mineiras. Formou-se na Escola Normal de Barbacena (1904) e trabalhou como educadora, adotando a pedagogia de Francisco Ferrer e lecionando em Escolas Modernas. Como líder comunitária, iniciou um trabalho junto às mulheres da região, incentivando um mutirão para construção de casas populares destinadas à população carente da cidade, e fundou a Liga contra o Analfabetismo.

“Entre nós e as palavras

Os emparedados

Entre nós e as palavras,

O nosso dever de falar”

Maria Lacerda de Moura

Ainda em Barbacena, cidade na qual havia publicado Em torno da educação (1918), livro no qual manifesta seu otimismo pela libertação feminina como resultado do processo educacional e, no ano seguinte, Renovação (1919), em que começa a demonstrar sua preocupação com a exclusão do povo do processo sociopolítico, já manifestando dúvidas quanto à expectativa da obra anterior. Os livros tratam da instrução das mulheres como instrumento transformador de suas vidas. Nessa época, assumiu a presidência da Federação Internacional Feminina, entidade criada por mulheres das cidades de Santos e São Paulo. Inseriu em seus estatutos, em 1921, a proposta de modificação do currículo de todas as escolas femininas, incluindo uma disciplina sobre a História da Mulher. A chegada a São Paulo, em 1921, na década da aceleração industrial que iria forjar o ideário de “locomotiva do Brasil”, confrontou-a com as difíceis condições de vida do proletariado paulista, fazendo-a perceber a que feminismo deveria engajar sua paixão militante.

Em 1921, encontra Bertha Lutz e fundam a Liga para Emancipação Intelectual da Mulher (Leim), um grupo de estudos que buscava a emancipação intelectual das mulheres e que assumiu a luta pelo voto feminino. A atuação das ativistas da Liga consistia, basicamente, em dar entrevistas, escrever artigos para jornais sobre o direito ao voto para as mulheres bem como dar subsídios sobre esta questão para parlamentares.

Maria Lacerda de Moura, porém, logo deixou o grupo de Bertha Lutz, alegando que a luta de Lutz e de suas companheiras iria beneficiar algumas poucas mulheres. Enquanto as primeiras não confrontavam o poder patriarcal instituído, Moura identificava o homem como opressor na figura do capitalista que explorava o trabalho das mulheres. Militante anarquista, ela pensava o feminismo no contexto das lutas de classe.

Céli Pinto3 nomeia essas duas tendências do movimento feminista brasileiro como feminismo bem-comportado4, o liderado por Bertha Lutz, e feminismo malcomportado, no qual se enquadraria Maria Lacerda de Moura. Em suma, essa diferença tem a ver com as classes sociais das feministas. As “bem- comportadas” voltavam-se para os anseios das mulheres das classes média e alta: direitos políticos; é o feminismo do discurso ameno e reformista. As “malcomportadas” preocupavam-se com os direitos das trabalhadoras das classes baixas que cumpriam extensos horários de trabalho e sofriam assédio dos seus chefes ou patrões.

As mulheres que militavam junto ao feminismo malcomportado anteciparam, no Brasil (pois já havia toda uma discussão feita pelas comunistas europeias como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai), o debate da especificidade das mulheres sob a exploração capitalista, levantando como principal bandeira a luta da questão do tempo de trabalho, denunciando a dupla jornada a que estão submetidas as mulheres operárias.

“As operárias feministas da época denunciaram a exploração de que se sentiam vítimas. Lutaram de muitas formas (greves, protestos, manifestações) contra as condições de trabalho a que estavam sujeitas, os baixos salários, a opressão sexista exercida pelos patrões, a discriminação nos sindicatos, a opressão na família operária”5. A greve das tecelãs da Fábrica São Bento (Jundiaí-SP, em 1906) foi provavelmente a primeira de uma série de demandas por melhores salários posta em pauta. Sucederam-se as greves de 1907, o manifesto de 3.000 mulheres por maior salário e menor jornada de trabalho (que, em alguns casos, chegava a 13 horas), a greve do Cotonifício Crespi, em 1917, que logo se expandiria, chegando a atingir 30.000 têxteis paralisados na cidade de São Paulo e interior, eficazes no sentido de causar constrangimentos às desigualdades sociais observadas.

Podemos ver claramente a posição destas mulheres nos trechos do manifesto distribuído pela União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de Janeiro:

Vós que sois precursores de uma era onde possa reinar a igualdade

 para todos, escutai: tudo que fazeis em prol do progresso, militando no

 seio das nossas associações, não basta! Falta ainda uma coisa,

 absolutamente necessária e que ocorrerá mais eficazmente

 para o fim desejado por todos os sofredores.

É a Emancipação das Mulheres (…)

Maria Lacerda de Moura tornou-se ativa colaboradora da imprensa operária, publicando em jornais como A Plebe e O Combate. Em 1923, lançou uma revista mensal intitulada Renascença, “cujo objetivo era lutar pela emancipação feminina, a divulgação das artes plásticas, da música e da poesia”6. Em um artigo dessa revista, referiu-se positivamente às reformas educacionais promovidas pelos bolcheviques na URSS.

No Brasil, o movimento operário incorporou duas questões básicas para as mulheres: a luta contra os baixos salários e a opressão sexista exercida pelos patrões. Tal situação da mulher operária, condicionada por um moralismo conservador, propunha uma ação política para as mulheres em decorrência da atitude de seus homens, que lhes reservava apenas o papel de companheira, definindo a casa como espaço da mulher, enquanto mulher de um homem, cuidando de crianças e tarefas domésticas, ao lado do trabalho extradoméstico que crescentemente ia penetrando cada vez mais em seu cotidiano; destarte, as contribuições de Maria Lacerda de Moura buscavam destruir pela base esses dogmas e as próprias posições de algumas dessas mulheres que os iam revendo gradativamente.

Numa sociedade que marginaliza os setores ligados ao trabalho produtivo e os setores femininos da população, os comunistas vão desenvolver a luta contra essa exclusão, tomando o operariado como um todo, distinguindo muito vagamente uma ou outra questão resultante da interseção operários-mulheres. É justamente aí que se insere o feminismo de Maria Lacerda de Moura. “A consciência do alijamento do operariado da vida cidadã não lhe oblitera a percepção da dupla exclusão vivida pela mulher operária, as discriminações por ela sofridas, as condições de formação da família, os mecanismos de criação do conformismo feminino e daqueles capazes de reproduzir essa condição subalterna, tanto no trabalho doméstico quanto no assalariado”.7

Sua concepção de emancipação, humana e feminina, leva-a a identificar e denunciar, de modo insistente e mesmo redundante, um de seus principais inimigos: o totalitarismo fascista. Insistindo na impossibilidade de libertação do indivíduo numa organização social burguesa baseada na exploração, na escravização do outro, na elevação de anseios fúteis à necessidade, desfralda sua bandeira antifascista.

Entre 1928 e 1937, viveu em uma comunidade agrícola autogestionária, em Guararema. Tal comunidade foi desfeita pelo governo opressor de Getúlio Vargas, levando-a a refugiar-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou como radialista até o fim de sua vida.

Maria Lacerda de Moura foi uma das mais importantes lutadoras feministas do Brasil, sendo uma das primeiras a pensar a luta das mulheres sob a ótica da luta de classes. Os seus livros e artigos eram focados em temas que consistiam em tabus para a época. Com efeito, era diletante acerca dos seguintes temas: educação sexual dos jovens, direito ao prazer sexual, divórcio, maternidade consciente e prostituição. Sempre criticou e contrariou a moral burguesa, denunciando a opressão exercida sobre as mulheres, particularmente as mais pobres.

O pensamento visionário de Maria Lacerda de Moura reflete sua importância ao longo da história da luta das mulheres no Brasil. Valia-se de um discurso para ser ouvido e entendido como grande protagonista de seu tempo.

Diogo Belloni
Militante da UJR

Fontes:

  1. LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. A outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.
  2. Pagu, uma rebelde da vida e das artes, foi existencialmente uma feminista, apesar de em seu tempo não se identificar com aqueles que assim se nomeavam. Acreditava que as reivindicações das mulheres deveriam estar vinculadas à transformação da sociedade. Irreverência, inconformismo, coragem e ideal assinalaram seu jeito de viver, distanciando-a do ideal feminino de sua época, que se tratava de um feminismo reformista.
  3. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
  4. As bem comportadas eram as feministas cívicas, tendência no movimento feminista de maior repercussão nas primeiras décadas do século XX.
  5. PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina na constituição do sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
  6. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
  7. BUITONI, Dulcília Schröder. Imprensa feminina. São Paula: Ática, 1990.
  8. LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. A outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.