A história do homem se diferencia das demais espécies pela capacidade do ser humano de conhecer e pensar, desenvolvida pela necessidade de sobreviver num mundo hostil, ao contrário destas, que também apresentam certo conhecimento da natureza, mas se subjugam a ela ou se extinguem. O ser humano aprendeu a conhecer a natureza e, ao invés de esperar que ela lhe desse os meios de subsistência, foi extrair dali suas riquezas, através do trabalho; as mãos serviram de ferramenta, a habilidade do homem evoluiu em conjunto com seu cérebro e, assim, criou bens materiais para satisfazer suas necessidades, transformando a natureza pela aplicação da imaginação, raciocínio, criação e inovação.
Do arco e flecha ao computador, foi através da capacidade de descobrir, conhecer e transformar que se deu todo o desenvolvimento artístico, filosófico, cientifico e tecnológico, ressalvando-se que é na contradição entre as forças produtivas (meios de produção e força de trabalho) e as relações de produção (propriedade econômica das forças produtivas) que encontramos a explicação para a evolução dos modos de produção, como aprendemos com Marx.[1]
A criação da patente
O capitalismo, para assegurar a propriedade privada dos meios de produção, estabeleceu a “Patente” como um direito exclusivo em relação a um invento, que pode ser um produto, aparelho ou um processo, que proporciona um novo e criativo modo de fabricação, ou oferece uma nova e inventiva solução técnica a um determinado problema.
Um invento deve, em geral, preencher as seguintes condições para ser protegido por uma patente: Ser novidade, ou seja, deve demonstrar algumas características inéditas que não sejam conhecidas no estado da técnica, conjunto dos conhecimentos existentes no seu campo técnico; Não pode ser evidente ou envolver algo que possa ser deduzido por uma pessoa com conhecimento mediano naquele campo técnico, a denominada atividade inventiva, resultado da capacidade criativa do inventor; Deve ter uma finalidade pratica ou capacidade de aplicação industrial.
O invento deve constituir o que se denomina “matéria patenteável” em termos legais; os programas de computador, por exemplo, não são considerados matéria patenteável.
A Lei da Propriedade Industrial (LPI) brasileira exclui os Programas de Computador da competência da Propriedade Industrial, ao regular direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.[2] A LPI também exclui da possibilidade de patenteamento os métodos matemáticos[2] e as concepções puramente abstratas[2]. O software como uma sequência de instruções expressa em linguagem de programação, ou seja, um método matemático, não é passível de patenteamento. Como método matemático, sua concepção é puramente abstrata, não o resultado nem sua representação, logo, também não seria patenteável. Os programas de computador já são protegidos por meio da Lei de Direitos Autorais e por legislação específica no Brasil.[3]
A patente de software
No entendimento do professor Pedro Antonio Dourado de Rezende, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, o patenteamento de programas de computadores não resiste a uma análise mais criteriosa[4]:
“…Processo executável por software nada mais é do que algoritmo. Software só faz manipular símbolos segundo regras lógicas. Um conjunto de tais regras visando obter resultado a partir de um contexto de valores iniciais admissíveis se chama, na ciência da computação, algoritmo. Um algoritmo é uma idéia de como se implementar um tal conjunto de regras; Falar de patente de software, de processo ou de produto, são truques para se desviar das restrições ao patenteamento de idéias, fórmulas ou leis matemáticas…”
Outro aspecto a abordar é a questão da atividade inventiva, requisito essencial a uma invenção, e esta como resultado da capacidade criativa não existe quando o objeto criado ou desenvolvido é evidente do Estado da Técnica para um técnico no assunto. O software não apresenta esta característica, daí a necessidade do “Software Proprietário” manter seu código fechado, pois o seu desenvolvimento é evidente para qualquer programador de nível mediano, já que a inovação em informática é acumulativa, baseada em experiências e conhecimentos prévios.
Os softwares relacionados a um equipamento, ou inseridos em um processo, também são vedados pela nossa legislação de forma indireta, já que a LPI[5] exige suficiência descritiva, logo o software com seu código fonte fechado não preenche este requisito, não sendo passível de patenteamento, não apresenta o fundamento básico da patente que é o retorno para a sociedade do conhecimento protegido.
Mesmo que se discuta a tecnicidade do software esta argumentação não prevalece, porque o significado das seqüências manipuladas pelos programas não altera e não faz parte da função técnica do hardware; de forma análoga, uma nova partitura não altera o funcionamento técnico de um violino, (Dourado e Lacerda, 2005)[6].
Este imbróglio referente aos softwares e à propriedade industrial não é único, muitos outros existem e, como as chamadas patentes de segundo uso terapêutico, de microrganismos, de sementes, etc., nos mostram que a utilização das atuais formas de proteção à Propriedade Intelectual não contemplam o estágio atual da sociedade em rede e às novas tecnologias. Fazem-se necessárias formas compatíveis de reconhecimento para o trabalho intelectual, incentivando sua produção, tendo como fontes a liberdade e a inclusão, ao contrário da visão enganosa neoclássica que procura vincular a concessão deste monopólio privado a um possível retorno deste conhecimento tecnológico para a sociedade ao fim deste.
A propriedade intelectual
O Certificado de Autor é um instrumento que demonstrou eficácia como alternativa aos instrumentos conservadores da propriedade intelectual, onde por questões de ordem política não se concede o monopólio privado, seja como um instrumento avançado em economias socialistas, seja como mecanismo de impulso para economias em desenvolvimento.
Em economias socialistas, onde a propriedade privada tem que ser gradativamente abolida, com sua substituição pela propriedade coletiva, temos a introdução da figura do Certificado de Autor, a princípio convivendo com os institutos anteriores. Esta experiência ocorreu em diversos países socialistas, em especial na extinta União Soviética, onde por um lado havia o reconhecimento ao inventor, lhe sendo concedidos privilégios na sociedade, como retribuição pelas suas criações, por outro lado havia o favorecimento incondicional da publicidade das inovações, seu uso e aplicação tendo como premissa principal o interesse geral da sociedade.
A figura do Certificado de Autor permite que as criações sejam colocadas à disposição das organizações do Estado de forma livre para sua exploração, através de Empresas, Cooperativas, Sociedades, Organismos e Instituições estatais, sem qualquer anuência previa do autor e também comercializadas desta forma, sendo outorgado aos criadores um certificado que garanta sua autoria, o denominado Certificado de Autor. Este certificado propicia tão somente um direito pessoal, que não pode ser negociado por qualquer meio e que se extingue com o autor. Esta impossibilidade de transferência é uma diferença fundamental entre os dois institutos.
O Certificado de Autor tem em comum com o Direito Autoral o reconhecimento de um direito moral, porém se diferencia deste ao não conferir nenhum direito material. A figura que mais se aproxima do Certificado de Autor seria a de um artigo cientifico, onde a novidade é essencial e há o reconhecimento da capacidade intelectual do autor, como ensina Domingues[7],
“O Certificado de Autor na União Soviética poderia ser definido como um título que atesta a autoria de um invento e o direito pessoal e intransmissível que o Estado outorga ao inventor”.
Na União Soviética, o autor da invenção tinha o direito de apresentar sua criação como tese e receber o titulo acadêmico correspondente, ser qualificado como mestre nas universidades, sem a necessidade de passar em processos seletivos, além de obter o titulo de “insigne inventor”, o que não persiste atualmente na Rússia .
A figura do Certificado de Autor poderia ser aplicada de forma imediata como um instituto dos Direitos da Propriedade Intelectual, para os casos mais controversos, como a questão da proteção aos programas de computador.
Concluindo, somos contrários à concessão de patentes para programas de computador por principio e contrários a esta diretriz que vem para disciplinar uma questão em que não há consenso no INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial, no governo, nas universidades, centros de pesquisas, nas empresas e profissionais do ramo, e na sociedade em geral.
Joaquim Adérito
Pesquisador do Instituto Nacional da Propriedade Industrial e militante do PCR
[1] Marx, Karl – Prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”- Editora: Martins Fontes, 1977.
[2] Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:
I – descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos;
II – concepções puramente abstratas;
V – programas de computador em si.
[3] Art. 1º. Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
Art. 2º. O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.
[4] Dourado de Rezende, Pedro Antonio, “Sobre Patentes `de software`” http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/entrevistaPP.html, acesso em 25/07/2006
[5] Art. 24. O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução.
[6] Dourado de Rezende, Pedro Antônio e Lacerda, Hudson Flávio Meneses, Computadores, Softwares e Patentes, II Conferência Latino-americana e do Caribe sobre Desenvolvimento e Uso de Software Livre da UNESCO, Setembro de 2005, extraído de http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/LACFREE2005.html , acesso em 23/12/2006.
[7] Domingues, Douglas Gabriel, “ Direito Industrial Patentes”, Capitulo 8, forense 1982