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sábado, 21 de dezembro de 2024

Sandra Ramírez, companheira de Marulanda, recorda a luta e sua vida ao lado do guerrilheiro

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MarulandaNoto que ela está nervosa. É a primeira vez que concede uma entrevista. Eu a encontrei em Havana. É uma das 13 mulheres que formam o grupo de 30 pessoas que negociam com o governo colombiano pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), na tentativa de um possível – e ansiado– processo de paz. Com sua grande sensibilidade, ainda que de uma elegância natural, faz parte desses 40% de mulheres combatentes. Suas palavras são acompanhadas pelo movimento das mãos e pelo brilho de seus olhos negros. Seu nome é Sandra Ramírez, é a viúva do líder histórico da organização guerrilheira, Manuel Marulanda Vélez.

Diante de minhas duas primeiras perguntas, responde como se fosse um discurso. Paro o gravador para recordá-la que não faço uma entrevista: quero conversar com ela. Então, sorri e deixa os olhos vagarem para um lugar distante, começa com suas recordações e presentes.

“Em 1981, na região campesina em que vivia com minha família, os guerrilheiros começaram a passar. Meu pai servia de guia para que eles conhecessem a região. Muito me chamou atenção o fato de uma mulher estar no comando. Devido às condições econômicas não pude continuar meus estudos secundários e como essa mulher se tornou uma referência para mim, decidi ingressar nas FARC.

“Entendi que não existe diferença entre homens e mulheres no combate. Também me chamou atenção que se travasse a luta contra o machismo e pela igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. O que não era fácil, considerando que a maioria dos combatentes são do campo, onde o machismo é mais acentuado, além de serem oriundos de uma sociedade capitalista altamente sexista. Nas FARC, criamos mecanismos para romper com esta postura. Essa é uma de nossas lutas diárias ao lado dos companheiros. Porque nossa luta é pela igualdade dos gêneros e seu bem estar.

“É esse respeito pela mulher e a possibilidade de que avancemos como pessoas, combatentes e profissionais que faz com que tantas mulheres ingressem em suas fileiras. Aqui oferecemos o que as condições sociais e econômicas do país não promovem à imensa maioria, muito menos às mulheres. Uma mulher nas FARC cumpre missões e exerce o comando, porque a partir do momento que ingressa na organização, é educada para que tome consciência de sua condição de pessoa e combatente. Aqui uma mulher pode estudar computação, comunicação, ser médica, enfermeira ou qualquer das especialidades que temos. Aqui a mulher opina e propõe, pois as decisões das FARC são coletivas.

“Claro, não gostamos de perder a feminilidade. Por isso a organização nos dá mensalmente, quando as condições da guerra e as economias permitem, creme para o corpo, esmalte para as unhas, maquiagem, além de toalhas higiênicas e os anticoncepcionais. Não é incomum irmos para a linha de combate bem perfumadas e com o cabelo penteado.

“As relações de casais são tão normais como em Bogotá ou Madri. A propaganda midiática do inimigo diz que as guerrilheiras são obrigadas a estar sexualmente com os companheiros. Isso é mentira. Nós decidimos livremente estar com um companheiro se gostamos. Aqui nos apaixonamos, nos desapaixonamos e sofremos decepções, como em todas as partes do mundo.

“Para nós, o controle de natalidade é obrigatório. Não se pode ser mãe e guerrilheira. Quando ingressamos, aceitamos esta condição. Não se pode esquecer que nós somos parte de um exército. Quando ocorre a gravidez, a guerrilheira pode escolher entre abortar ou sair e ter seu filho. O inimigo nos menospreza por sermos mulheres, porém também nos teme. No geral, quando capturam companheiras, as mesmas são violadas, torturadas e chegam a cortar-lhes os seios, a mutilá-las. Existem casos atrozes. Nos tratam como espólios de guerra. Nos temem porque os enfrentamos de igual para igual, demonstrando que podemos ser muito aguerridas no combate. Por isso, descarregam sobre nós seu medo, raiva e impotência ao capturar uma camarada.

E chegou o momento de fazer a última pergunta. Quando ela escutou sua voz mudou, surgindo um nó na garganta e passou a olhar o chão enquanto juntava as mãos. Respirou fundo e respondeu, sem que lhe faltassem sorrisos travessos em vários momentos de seu relato.

“Em 1983, eu tinha 20 anos. Foi com essa idade que vi no acampamento um senhor com um sombreiro, revólver na cintura, uma carabina e sem uniforme. Então, perguntei quem era. Fiquei paralisada. O camarada Marulanda era a pessoa mais simples que você pode imaginar. Ele não impunha sua presença como chefe. Nós que víamos nele a autoridade.

“Eu não fazia parte de seu grupo de segurança, ainda que estivesse no acampamento do Secretariado, máxima instância de direção das FARC. Em maio de 1984, eu fazia parte do grupo de apoio que recebia as comissões, políticos, jornalistas e demais pessoas que vinham ao acampamento de La Uribe para discutir sobre os acordos de paz que estavam sendo negociados com o governo. Um dia o camarada sofreu um acidente e fissurou uma costela. Como enfermeira, fiquei com a tarefa de aplicar-lhe os medicamentos e a fisioterapia. E durante o tratamento, a nossa aproximação e relação afetiva começou.

“Vivi com ele uma relação absolutamente normal. Eu não tinha privilégios por ser sua companheira. Ele sim era muito especial comigo. Claro que tínhamos discussões e dificuldades como todo casal, porém foram muitas as alegrias. Eu contribuía em suas responsabilidades. Por exemplo, me encarregava das comunicações, muitas vezes assumia a tarefa de secretária ou preparava-lhe comidas como ele gostava.

“Às vezes, vivíamos situações muito difíceis com relação à segurança, próprias da guerra. Ele era o homem mais procurado do país. Por muitas vezes tivemos o exército bem próximo, mas ele, com sua calma e experiência, sempre soube resguardar sua tropa. Ele era muito precavido e tudo planejava. Nós ríamos quando escutávamos notícias de que o tinham matado, enquanto bebíamos café. Porque o mataram muitas vezes.

“Minhas últimas horas com ele? Ainda tenho dificuldade para falar sobre esta parte de nossa vida em casal. Mas bem… Pelos sintomas, acreditávamos que tinha um problema de gastrite. E nesse dia (26 de março de 2008, NdA), tinha escrito um documento, enquanto escutava cumbias colombianas. Depois, o acompanhei para que tomasse banho, tomou chocolate e acreditamos que estava superado o problema. Às cinco da tarde, jantou o pouco de costume. Uma hora depois, recebeu os informes da guarda e deu orientações. Logo após, pediu que eu o acompanhasse ao banheiro. Eu levei o facão e o cinto com a pistola, pertences que nunca abandonava. Então, me disse que se sentia tonto. Vi que estava quase caindo e o contive. Comecei a chamar os que estavam de guarda. O camarada desabou. É terrível ver assim aquele que sempre foi tão forte. O levamos para cama e lhe demos massagens cardíacas e respiração, porém não voltou. Tudo foi tão inesperado. Não sofreu: até nisso perdeu o inimigo. Nem esse gosto deu aos seus inimigos.

Eu me senti triste, só e desamparada, ainda que toda organização estivesse comigo”.

Hernando Calvo Ospina é jornalista colombiano residente na França. Colaborador do Le Monde Diplomatique.

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