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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Aos nossos filhos

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A Organização das Nações Unidas (ONU) e as Convenções Internacionais de Direitos Humanos já definiam a participação especial que as sociedades e os Estados deveriam assegurar às crianças e aos adolescentes. Mas, quem disse que ditadura respeita lei, convenção, tratado, regra de moral ou ética? Desse modo, a longa noite de terror que escureceu o país durante 21 anos (1964-1985) vitimou também crianças e adolescentes.

O movimento estudantil – secundarista e universitário – engajou-se com todas as forças na luta para pôr abaixo a Ditadura Militar. Nas manifestações de rua que se seguiram ao golpe militar, tombaram garotos que se tornaram símbolos de resistência.  Jonas José de Albuquerque Barros, 17 anos, foi assassinado no dia 1º de abril de 1964, por ocasião de uma manifestação pública no Centro do Recife, em protesto contra o golpe que acabara de derrubar João Goulart da Presidência da República e implantar um regime ditatorial. Édson Luís de Lima Souto, há pouco havia completado 18 anos. Durante protesto por melhoria de condições no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, foi atingido mortalmente por um tiro da Polícia Militar.  Fernando da Silva Lembo, 15 anos, participava de uma passeata contra a ditadura no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1968, quando foi atingido na cabeça por uma bala disparada por um PM. Morreu no Hospital Miguel Couto no dia 1º de julho.

Adolescentes entre mortos e desaparecidos

Após a edição do AI-5 (13/12/1968), várias organizações políticas de esquerda optaram pela ação armada como forma de derrubar a Ditadura e implantar o socialismo. Entre seus militantes, havia secundaristas adolescentes que conheceram o braço pesado do terror estatal.

As crianças não foram poupadas. Filhos(as) de militantes foram apresentados(as) aos porões do DOI-Codi, do Dops e outras Casas da Morte, como ameaça para “abrir a boca” dos revolucionários que resistiam aos choques elétricos, pancadaria, pau-de-arara, sessões de afogamento.

 Eis, sinteticamente, algumas dessas histórias para não esquecermos jamais e cobrarmos com intensidade maior o direito à memória, à verdade, à punição dos algozes.

 “…Dorme, meu menino, dorme…”

VLADEMIR tinha oito anos e VIRGÍLIO FILHO, seis, na ocasião em que seu pai, Virgílio Gomes da Silva (leia A Verdade, nº 144) foi sequestrado, torturado e morto no dia 29/09/1969. Dia seguinte, a casa da família foi invadida e toda a família aprisionada, inclusive Isabel, um bebê de quatro meses.  As crianças foram levadas para um Juizado de Menores em São Paulo. Virgílio lembra: “…A noite era pior. Tinham umas luzes meio roxas para o lado do berçário da Isa. Meu irmão (Vlademir) me levava na cozinha para a gente roubar leite e dar para ela”. Eles dormiam embaixo do berço para impedir que levassem a irmã. “Eles nos levavam para ver umas casas bonitas e perguntar se gostaríamos de morar ali”. Uma tia os resgatou e periodicamente levava as crianças para uma esquina próxima ao presídio, de onde Ilda (a mãe) podia vê-las, embora elas não a vissem. Mas sabiam que era a mãe porque viam um jornal balançando (era Ilda acenando para eles). Quando a visita foi permitida, diz Virgílio, “a alegria de ver a mãe foi maior que todo o sofrimento pelo qual passaram”.  Libertada em 1979, Ilda foi com a família para Cuba, de onde só voltaram depois de adultos e formados. “Se há um paraíso na Terra, é Cuba. No Brasil, meu pai era tratado como bandido, em Cuba como herói. Nós éramos filhos de um herói”, testemunha Virgílio Filho.

IVAN SEIXAS tinha 16 anos no momento em que, no dia 16 de abril de 1971, foi preso juntamente com seu pai, Joaquim Alencar de Seixas. Ambos militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), do qual Joaquim era dirigente.  Foram barbaramente torturados. Depois, na mesma cela, Ivan ouviu do seu pai a última frase de sua vida: “Aguenta firme. Não fala”. Poucas horas depois, Joaquim morreria. Ivan não falou, sofreu muito, mas sobreviveu. Passou seis anos na cadeia (o resto de sua adolescência e parte da juventude). Atualmente, é diretor do Fórum de Ex-Presos Políticos de São Paulo.

MARCO ANTÔNIO DIAS BAPTISTA (1954-1970) tornou-se o mais jovem “desaparecido político” brasileiro. Tinha apenas 15 anos quando sumiu (1970). Militava na Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares). Há testemunho de que foi preso pela equipe de Fleury em São Paulo.

NILDA CARVALHO CUNHA era casada, mas contava apenas 17 anos. Militava no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) com o seu companheiro Jaileno Sampaio. Eles abrigaram Iara Iavelberg (leia A Verdade, nº 65). Tiveram o apartamento invadido. Iara foi morta. Nilda passou três meses presa, sofrendo torturas físicas e psicológicas. Saiu doente, ficou cega, teve pesadelos e crises de delírio. Estava internada quando o torturador, major Nilton Cerqueira, teve a ousadia de invadir seu quarto no hospital e ameaçá-la. A “visita” aterrorizante agravou seu estado de saúde, e Nilda faleceu em novembro de 1971.

MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA ARANTES, mulher de Aldo Arantes, ex-presidente da UNE e dirigente do PCdoB, viveu 11 anos na clandestinidade, dois anos no exílio e passou quatro meses presa em Maceió. Sua prisão se deu juntamente com dois filhos – um menino de três anos e uma menina de dois. Passaram pelo Dops, Cadeia Pública, Escola de Aprendizes de Marinheiro e Hospital da Polícia Militar. As crianças sofreram todos os rigores da prisão: “…não podiam ir à escolinha, nem sair para brincar no pátio. Estavam confinadas, privadas de liberdade, submetidas a condições degradantes”. Por conta da clandestinidade, os filhos de Aldo, como de muitos outros militantes, não sabiam o verdadeiro nome do pai. Conheciam-no como Roberto.

JOÃO CARLOS GRABOIS – JOCA sofreu as consequências da tortura ainda no útero quando sua mãe (oito meses), Crimeia Schimidt de Almeida foi presa e torturada pela Operação Bandeirantes (Oban), em São Paulo. Ele nasceu prematuro e ficou 52 dias na cela com a mãe.

Queriam separar o CACÁ, com apenas um mês de idade, de sua mãe Rose Nogueira (leia A Verdade, nº 125), mas ela resistiu tão bravamente que os repressores cederam. Depois, no Dops, a criança foi utilizada como ameaça para que a prisioneira respondesse ao que os torturadores gostariam de ouvir. Somente após 30 dias de prisão, deixaram-na vê-lo, e apenas por alguns minutos. Cacá (Carlos Guilherme Clauset, hoje jornalista e piloto de rally) tinha dez meses quando Rose foi solta.

OS “MALDITOS” DO ARAGUAIA – Durante a guerrilha do Araguaia (1973-1975), não foram apenas os guerrilheiros as vítimas da violenta repressão. Camponeses, tendo mantido ou não alguma relação com os militantes sofreram barbaramente, inclusive o sequestro de filhos, a maioria dos quais nunca apareceu. É o caso de Maria Bezerra de Oliveira, cearense que se deslocara para a região ainda na década de 50 e perdeu seus filhos levados pelos militares sem motivo algum. “Tinha um filho de oito anos, Juracy, que foi iludido por um militar e me largou por ele. Chorei 15 dias. Depois, eles voltaram com o menino, perguntaram se eu dava, então eu disse que não, porque meus filhos não eram cachorros, e ele levou. Dias depois, outros soldados vieram e levaram o caçula, Miraci”. Quando completou 15 anos, Juracy deixou a família do militar e reencontrou a mãe. Do filho mais novo, ela não teve mais notícias.

Um sentimento profundo de amor

Sofreram ainda os(as) filhos(as) de militantes que não foram presos nem mortos ou desaparecidos ou tiveram vida clandestina. Trabalhando, estudando e dedicando-se à militância, tiveram pouco tempo livre para dar atenção e carinho às suas crianças, que naturalmente carregam essa carência dentro de si.

 Não foi por falta de amor; ao contrário, foi por serem movidos(as) por um profundo sentimento de amor por todas as crianças; não conseguiam se sentir felizes ao lado do(a) filho(a), sabendo que milhares de meninos(as) sofrem as consequências do terror, de um sistema excludente e repressor.

Muitas vezes, com o coração partido e lágrimas contidas, deixaram de comemorar o aniversário do(a) seu (sua) filho(a) ou saíram no meio de uma festinha, pedindo desculpas entre abraços e beijos: “desculpa, filho(a), mas papai (mamãe) precisa trabalhar”.

Em nome de todos(as) os(as) militantes, um brilhante pedido de perdão feito por Ivan Lins e Vítor Martins. Aos que não seguiram o caminho do pai e/ou da mãe, que os compreendam, pelo menos, e os amem cada vez mais, certos de que são ou foram muito amados.

Aos Nossos Filhos

Ivan Lins

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

Quando lavarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

Fonte – Direito à Memória e à Verdade – Histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura – Secretaria Especial da Presidência da República, 2009

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