Numa de suas famosas canções, Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, escreveu:
“Terceiro mundo, se foi,/ Piada no exterior,/ Mas o Brasil vai ficar rico,/ Vamos faturar um milhão,/ Quando vendermos todas as almas,/ Dos nossos índios num leilão,/
Que país é esse?”.
A música Que país é esse? foi lançada em 1989, mas continua atual, em todos os sentidos. Afinal, os índios sofrem até hoje os males da sociedade moderna. Têm visto há séculos suas terras, suas vidas e suas almas serem tomadas à força desde que o primeiro europeu por aqui chegou, em 1500. Além do mais, historicamente tiveram sua população dizimada. Mais que isso, foram forçados (em muitos casos) a esquecer suas tradições em troca da “civilização”.
E é justamente isso que ratifica o então “recém-descoberto” Relatório Figueiredo, que traz uma série de acusações contra o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão criado, em 1910, para supostamente proteger os índios e seus direitos e operou em diferentes formatos até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que vigora até os dias de hoje.
O documento de mais de sete mil páginas foi elaborado pelo então procurador Jáder de Figueiredo Correia, que, em 1967, coordenou uma investigação que denunciou uma série de atentados ao povo indígena, como escravidão, tortura e morte. Nas palavras do próprio Figueiredo: “O Serviço de Proteção ao Índio degenerou-se a ponto de persegui-los até o extermínio”.
Em uma das inúmeras passagens brutais do texto, um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.
Ainda podemos ver em suas páginas que o sofrimento de nossos índios ia além do sofrimento físico, pois, afora os maus tratos, tinham suas posses tomadas, como o procurador reitera: “O patrimônio indígena é fabuloso. As suas rendas alcançariam milhões de cruzeiros novos se bem administradas. Não requereria um centavo sequer de ajuda governamental e o índio viveria rico e saudável em seus vastos domínios”.
Tudo isto consta do relatório que está sendo analisado pela Comissão da Verdade, mas, em termos práticos, não deve mudar em nada a situação dos índios, que continuam sendo explorados e exterminados.
Ao menos o relatório serve para mostrar a realidade do povo indígena brasileiro, que estava escondida no esquecimento da opinião pública por mais de quatro décadas graças ao regime militar. A leitura de toda essa história de pura desumanidade contra um povo inocente que teve tudo roubado sem nada fazer só serve de exemplo para mostrar que onde o capitalismo aporta deixa destruição e desigualdade. Um sistema que só pensa, como disse Renato Russo, em “vender todas as almas de nossos índios num leilão”.
Lene Correa, Recife