A Verdade entrevistou a professora Dra. Viviane Melo de Mendonça, do Departamento de Ciências Humanas e Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sobre o tema homofobia. Na entrevista, ela aponta o sistema capitalista e sua estrutura patriarcal, como principal fator de opressão da homossexualidade, apontando, como solução de enfrentamento, uma política de organização coletiva.
A Verdade – O Brasil é um dos países com maior índice de violência contra homossexuais. Por que?
Viviane Melo de Mendonça- Vejo inicialmente que é preciso entender a violência como tipo de linguagem, quero dizer, ela tem um papel na dinâmica cultural da sociedade brasileira. A violência, como expressão, está nas mídias, nas escolas, nas famílias, no Governo, está no espaço público e no espaço doméstico; e enuncia os conflitos do cotidiano e diferencia territórios e grupos sociais. Do mesmo modo, a violência contra homossexuais no Brasil, que se revela no nosso cotidiano, tanto em piadas ridicularizadoras como em assassinatos cruéis, e que coloca o Brasil em uma posição alarmante, está evidentemente nos dizendo que um determinada estrutura social deve ser mantida, e que alguns grupos as querem manter. A estrutura social e econômica a ser mantida “violentamente” é aquela sustentada por um patriarcado sexista e pela heteronormatividade (que é a obrigação da heterossexualidade como padrão de normalidade), e, cabe ressaltar, é a mesma estrutura que produz também as desigualdades sociais. Deste ponto de vista, não há possibilidades de enfrentamento da violência contra homossexuais sem que haja organização política coletiva, visto que esta violência demarca grupos sociais, e não apenas indivíduos, e produz a subalternaidade no campo do desejo, da sexualidade e do gênero. E, como sabemos, a superação de qualquer posição de subalternidade imposta a grupos sociais apenas acontece com ações políticas coletivas.
A violência contra homossexuais é diferente quando se trata de homens e mulheres?
Como falei antes, a violência e, no caso, a violência contra os homossexuais pode ser entendida como linguagem, e, portanto, a homofobia e a lesbofobia são entendidas aqui como um discurso e, como todos discursos, é vivencial, político e ideológico. Ou seja, nenhuma palavra ou conceito é neutro, os discursos são históricos e políticos. Portanto, a homofobia e a lesbofobia são também uma posição política e ideológica, e construída historicamente (penso do mesmo modo a transfobia, que é a violência contra as pessoas transsexuais). Muitas vezes, esta posição não é consciente e faz parte de um processo de alienação das condições concretas, e, muitas vezes, é uma posição consciente daqueles que desejam a manutenção deste modelo de sociedade, que denomina, numa perspectiva feminista, de uma sociedade capitalista patriarcal e heterosexista. Deste ponto de vista, a lesbofobia se diferencia da homofobia – essa entendida aqui, especificamente, como a violência contra gays – primeiramente pela invisibilização da mulher lésbica na história e na sociedade, de seus direitos e especificidades. A lesbofobia acontecesse mais intensamente pela sua invisibilidade; também pode ser representada pelo seu aparecimento (ou visibilidade) como um desejo que é tomado como propriedade dos homens heterossexuais; como se a sexualidade lésbica existisse à serviço do prazer masculino. Significa aqui que a lesbofobia é produto do sexismo, da opressão e violência de gênero, da reprodução do lugar da mulher como objeto e propriedade do mundo masculino. Quando as lésbicas recusam este lugar, a violência lesbofóbica pode se estabelecer em outra ordem, elas podem ser novamente invisibilizadas e não reconhecidas, ou então podem ser colocadas na posição de alguém que necessita de uma “correção” por via de um estupro ou situadas sob a representação de que não foram “possuídas” por um “homem de verdade” (e, por esta razão, são o que são). Por outro lado, também vejo que a homofobia também se fundamenta no sexismo, que se revela nas violências contra todos (e tudo) que se apresentam como “efeminados”.
Há na sociedade uma “naturalização” da heterossexualidade?
No campo da sexualidade há uma norma, e ela é chamada de “heteronormatividade”. A heteronomatividade prevê o que é chamado por alguns autores e autoras de “heterossexualidade compulsória”, que nada mais é que uma normalização da heterossexualidade e uma obrigatoriedade para o desejo heterossexual. A heteronormatividade também produz uma subalternização nesta sociedade do desejo homossexual, que faz da “homossexualidade” uma sexualidade subalterna, que se coloca como inferior, excluída e abjeta. A heteronormatividade pode dar uma ideia de “naturalização” da heterossexualidade, e faz com que as sexualidades que fogem deste padrão sejam vistas como um desvio, ou uma doença ou um pecado. Quando se fala em normalização (ou naturalização) da heterossexualdiade em nossa sociedade não quer dizer que há um silenciamento ou repressão da homossexualidade, pelo contrário, ela é falada e muito falada nos lugares onde é negada ou rejeitada, e é neste muito falar que o desejo e afeto, amor por pessoas do mesmo sexo, são colocados na posição de subalternos; seja por discursos do pecado ou da doença, ou do ridículo (traduzido em piadas). E fundamentado nestes discursos que o preconceito homofóbico/lesbofóbico/transfóbico é produzido.
Por que as travestis e os travestis, assim como as mulheres, são vítimas da exploração sexual e do tráfico de pessoas?
Retomo aqui a ideia de que a homofobia/lesbofobia/transfobia é resultado de uma sociedade capitalista sexista. As mulheres e as mulheres trans em sua maioria são alvo principal de tráfico de pessoas, aqui entendida em seu aspecto de deslocamento de uma pessoa com o objetivo de que exerça coercitivamente a prostituição. Acontece, portanto, a meu ver, outra forma de violência e opressão de gênero, da transformação da sexualidade feminina em mercado e objeto de consumo por vias da violência, que é outro produto do não reconhecimento da “mulher” como sujeito. Mas este é um assunto muito mais complexo e envolve questões sobre exploração do trabalho tendo como base também, além das questões de gênero, as noções de raça/etnia e classe social em nível mundial, e que estão implicadas também nas análises do tráfico internacional de pessoas.
Como essa luta pode se ampliar para atuar em problemas coletivos e a reivindicações de políticas públicas?
Os direitos civis são bandeiras históricas de lutas dos movimentos LGBT, uma luta para se tornarem sujeitos legítimos nesta sociedade. Estas bandeiras também podem ser entendidas como uma estratégia de enfrentamento contra esta mesma sociedade que não os reconhece e os inferioriza como cidadão. Mas, por outro lado, centrar-se unicamente em direitos individuais é uma armadilha, que, ao invés de transformar a estrutura social que os oprime, a reforça e a reproduz. Portanto, parece-me necessário ter clareza de como a estrutura desta sociedade produz o heterosexismo. Entendo que isto deve estar na agenda dos movimentos LGBT, e também este deve ser um dos principais focos de enfrentamento das suas ações coletivas. Parece-me também que o que produz o heterossexismo – que, ao meu ver ,é o capitalismo patriarcal e o sexismo – é o que também produz as desigualdades sociais, o que faz com que a luta dos movimentos LGBT também seja a luta contra todos os tipos de opressão. Em outras palavras, esta politização da sexualidade se torna uma ferramenta de luta contra este heterosexismo, que produz tanto a violência contra a mulher, a discriminação de gênero como o preconceito homofóbico/lesbofóbico/transfóbico que mantém as hierarquias sociais, morais e políticas, visto que se articulam de modo evidente – é só conferir os dados sobre a violência contra homossexuais – com as categorias de classe social e raça/etinia.
Qual mensagem você deixa às/aos leitoras/es de A Verdade?
Gostaria de deixar uma fala de uma intelectual feminista lésbica de origem latino-americana, e que pode nos inspirar na luta por uma sociedade igualitária. O nome dela é Gloria Anzaldua, e ela nos diz em “Falando em Línguas: Uma Carta para as Mulheres Escritoras do Terceiro Mundo”: Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Ponham suas tripas no papel. Não estamos reconciliadas com o opressor que afia seu grito em nosso pesar. Não estamos reconciliadas.
Marina Mendes, São Paulo