Já se passaram quase três anos desde o início da onda de mobilização popular que ficou conhecida como Primavera Árabe. Em dezembro de 2010, quando o tunisiano Mohamed Bouazizi pôs fogo no próprio corpo como forma de demonstrar seu desespero ante a grave situação social vivida sob o governo ditatorial de Ben Ali, estava na verdade acendendo o pavio de um grande barril de pólvora.
O Norte da África e o Oriente Médio compreendem países tão diversos como Mauritânia e Iraque ou Saara Ocidental e Egito. Em sua grande maioria falante de língua árabe e alvo de disputa entre diferentes potências imperialistas. É uma região com forte histórico de luta e resistência. Ao mesmo tempo, é bastante castigada pelas políticas chamadas neoliberais, com altos níveis de desemprego, corrupção e miséria para o povo.
Após os últimos três anos, vivemos um momento em que o processo político chega a uma encruzilhada em importantes países da região, e uma nova ditadura militar, ainda mais sangrenta, se instalou no Egito. Em um momento em que o volume e a extensão dos movimentos populares chegam com bastante força também a outros países, como Brasil e Turquia, é de grande importância tirar lições deste processo..
Uma nova ditadura militar no Egito
A Praça Tarhir, no centro do Cairo, capital do Egito, é um dos principais símbolos da Primavera Árabe. A presença persistente de milhares de manifestantes acampados nessa praça tornou a permanência do ditador Hosni Mubarak, há 30 anos no poder, insustentável.
Mubarak foi herdeiro do prestígio da revolução que pôs fim à monarquia no Egito na década de 1950, liderada por Gamal Abdel Nasser (Ver A Verdade, setembro/2011). Após a nacionalização do Canal de Suez e o enfrentamento militar contra Israel em defesa das colinas de Golã, o exército encarnou a defesa da nação e do povo. No entanto, os privilégios da classe burguesa foram mantidos e, aos poucos, as novas gerações de oficiais foram se utilizando de maneira escusa dos negócios públicos controlados pelo exército.
O projeto de independência nacional foi abandonado e o Egito se tornou uma colônia dos EUA. O país é um dos três que mais recebem financiamentos militares dos Estados Unidos, ao lado da Colômbia e de Israel. Sob a presidência de Mubarak, o regime degenerou para uma ditadura corrupta e sanguinária, que colocou os partidos de esquerda na ilegalidade e perseguiu sindicatos e greves. A primavera tardou, mas chegou.
Com a renúncia de Mubarak em fevereiro de 2011, um período de indefinição na vida política teve início. Uma junta militar que ficou conhecida pela sigla SCAF (SupremeCouncilofArmed Forces – Conselho Supremo das Forças Armadas) passou a governar objetivando manter a ditadura sem a figura do ditador. Durante esse período, o ódio popular contra o exército recrudesceu. Nenhuma força política com um programa afeito à classe trabalhadora foi capaz de cumprir um papel político dirigente frente às mobilizações que seguiram em ascendência.
A Irmandade Muçulmana¹, por outro lado, cresceu em popularidade na base do discurso da moralidade e contra a corrupção. Ao legalizar seu partido, Partido da Liberdade e Justiça, obteve a maior parte dos votos na Assembleia Constituinte e venceu as eleições presidenciais elegendo Mohamed Morsi, em uma votação apertada, em junho de 2012.
No governo, Morsi foi incapaz de realizar qualquer reforma de interesse popular, seja a reforma agrária, a nacionalização das reservas naturais ou a garantia de direitos trabalhistas. No âmbito internacional, manteve posição vacilante em relação à defesa do povo palestino, cedendo a várias pressões dos EUA.
Após vários conflitos com a cúpula do exército, Morsi resolveu suas diferenças com a corporação alterando seu corpo dirigente e nomeando o general Abdel Fatah alSisi como ministro da Defesa. Foi o começo do fim do seu governo.
Diante da grave situação social e à gritante desigualdade que o governo não tinha intenção de resolver, o povo egípcio saiu novamente às ruas em marchas ainda mais multitudinárias. A cúpula do exército aproveitou-se da situação e, sob a direção de Al-Sissi, decretou um novo golpe militar depondo o presidente e colocando uma junta civil de fachada para representar o governo. Foi um golpe apoiado por parte do povo, insatisfeito com os desmandos da irmandade mulçumana. A cúpula do exército soube usar de maneira ardilosa os sentimentos nacionalistas do povo egípcio, denunciando como extremistas a todos os sírios, palestinos e iemenitas. Os EUA ofereceram total apoio, mas de forma discreta.
Após uma semana, a irmandade muçulmana pôde se organizar para resistir com acampamentos e manifestações. A resposta do governo foi decretar Estádio de Sítio, autorizar o uso de armas letais pela polícia e recolocar em funcionamento os centros de tortura da época de Mubarak. O novo governo militar começou com um banho de sangue e mais de mil pessoas assassinadas.
A Líbia
A Líbia surgiu como país no ano de 1911, com a derrota do Império Otomano na guerra com a Itália. Permaneceu como colônia da Itália até 1952, quando um rei fantoche foi coroado e o país permaneceu sob a influência econômica de França e Inglaterra. Em 1969, em uma revolução liderada por oficiais nacionalistas, o rei foi deposto e foi fundada a República Árabe Popular e Socialista da Líbia.
Em seus primeiros anos, o estado líbio se destacou pela luta anti-imperialista exercida na região. Nacionalizou a produção de petróleo e o comércio exterior. Combateu os intentos imperialistas dos EUA e de Israel. Apoiou a luta pela independência de diversos países da África e do Oriente Médio.
Após o colapso da União Soviética, no entanto, a capitulação do regime líbio e de seu líder, MuammarKhadafi, ficou evidente. Frequentando os salões da grande burguesia internacional e jantando com Silvio Berlusconi, o objetivo do regime passou a ser o de garantir os privilégios de uma casta dirigente utilizando os recursos do petróleo. Os ideais de nova democracia e atenção aos interesses populares foram abandonados.
O imperialismo estadunidense viu nessa situação uma janela de oportunidade para fortalecer sua influência no Oriente Médio e enfraquecer seus concorrentes igualmente imperialistas, Rússia e China. Rapidamente, os EUA fizeram fluir dinheiro, armas e agentes secretos para as regiões onde a oposição estava fortalecida. Milhões foram investidos para cooptar generais, ministros e outros funcionários de alto escalão. Os EUA desencadearam uma enorme propaganda midiática, procurando transmitir às outras nações uma imagem de barbárie e de violações humanitárias na Líbia.
O bombardeio de mentiras foi, sem dúvida, um dos maiores. A cada semana a imprensa da burguesia se esforça para distribuir boatos sobre esses países e proclamar a queda iminente do governo. No caso da Líbia, foi o que de fato aconteceu em outubro de 2011 com o assassinato de Khadafi, encontrado na cidade de Sirte após 42 anos no poder.
Como resultado da guerra civil, chegou ao poder na Líbia uma coalizão conhecida como Conselho Nacional de Transição – CNT. Na prática, o Conselho não foi capaz de unificar o país, que continua imerso em guerras sectárias em diversas regiões. Organizações islâmicas extremistas, como Al-Qaeda, cresceram em influência. O atual primeiro-ministro líbio, Ali Zidan, declarou que pretende estabelecer uma constituição baseada na lei islâmica sharia, o que aboliria conquistas sociais como o divórcio, por exemplo.
Um novo período de lutas na Tunísia
A Tunísia é o país onde o estopim da Primavera Árabe foi aceso. Uma série de manifestações populares, em fins de 2010, levou à derrubada do presidente Ben Ali, no poder desde 1987 graças a sucessivas eleições fraudulentas. Na década de 1990, Ben Ali pôs em prática um programa de privatizações que fortaleceu a presença do capital francês e aumentou o desemprego e a recessão. Acusado de vários crimes de corrupção, Ben Ali foi condenado à prisão perpétua, mas fugiu para a Arábia Saudita, onde se encontra exilado.
A derrubada de Ben Ali abriu um novo momento político e novas possibilidades para as organizações dos trabalhadores. O Partido dos Trabalhadores da Tunísia (PTT), ex-Partido Comunista dos Trabalhadores da Tunísia (PCOT), após anos de perseguição e ilegalidade, tornou-se legal e pôde disputar a eleição. A União Geral dos Trabalhadores Tunisianos (UGTT) deixou de ser um aparelho do governo e a liberdade sindical e de organização dos trabalhadores deu seus primeiros passos. Comunistas, nacionalistas e outras forças de esquerda fundaram, em 2012, a Frente Popular pela Realização dos Objetivos da Revolução, que tem como porta-voz o comunista Hama Hanami.
Em outro polo, se organizam os partidos conservadores encabeçados pelo partido Ennahdha, frente legal da Irmandade Muçulmana e hoje à frente do governo. O Ennahdha procura implementar uma série de graves retrocessos na vida pública da Tunísia, atacando o direito das mulheres. No campo econômico, o governo liderado pelo Ennahdha tem aplicado de maneira estrita as orientações neoliberais do FMI e da União Europeia como plano de salvação para a economia do país.
Os ajustes econômicos propostos pelo governo têm provocado um crescimento das mobilizações no último período. A eleição da Assembleia Constituinte, em outubro de 2011, deu a maioria para os islâmicos e para os partidos conservadores e apenas três deputados para o PTT, mas não conseguiu aprovar uma nova constituição. Os conservadores têm agido com violência para impor seu programa e dois dirigentes da Frente Popular foram covardemente assassinados em 2013: ChokriBelaid e Mohamed Brahimi. Após esses assassinatos, greves gerais foram convocadas e a Frente Popular passou a exigir a dissolução da assembleia constituinte.
O governo é incapaz de dar solução aos graves problemas sociais vividos pelo povo e a disposição de luta segue em alta. Ao mesmo tempo, a situação internacional e o desenvolvimento dos acontecimentos em outros países da região, como Egito e Síria, têm influência na situação interna do país. A Frente Popular é a grande esperança de uma saída dos trabalhadores para a Tunísia.
Quais são as lições desse processo?
Para os revolucionários do Brasil e do mundo todo, fundamental é tirar lições de todo esse processo de luta e aprender com os erros e acertos do processo. Principalmente, no momento em que o crescimento do movimento permanece em vários países e, em muitos lugares, a situação revolucionária bate à porta. As principais lições a tirar do processo, portanto, são:
Primeiro. Não podemos subestimar a capacidade de mobilização e a disposição de luta da classe trabalhadora e do povo. As organizações revolucionárias devem estar preparadas para a situação revolucionária.
Segundo. Não podemos subestimar as manobras do imperialismo para manipular as mobilizações e fazer valer seus interesses. Os países imperialistas, em especial os EUA, contam com uma quantidade infinita de dinheiro para fazer propaganda mentirosa, infiltrar agentes secretos e manipular as reivindicações utilizando-se demagogicamente do discurso contra a corrupção e promovendo um nacionalismo xenofóbico. Para conquistar seus objetivos, não vão vacilar em promover a guerra, a tortura e financiar regimes ditatoriais. É na Síria e na Líbia onde podemos ver mais claramente as dimensões dessas manobras.
Erram as forças políticas de esquerda que clamam sempre pela derrubada do governo de turno, muitas vezes repetindo as mesmas palavras de ordem defendidas pelo imperialismo e pela burguesia mais reacionária. Nosso princípio é o do fortalecimento da luta dos trabalhadores e de suas organizações, fazendo a revolução social avançar.
Terceiro. Fundamental é construir, fortalecer e ampliar o instrumento da revolução, o Partido Comunista. As revoltas populares que não contaram com organizações centralizadas, capazes de apresentar à classe um programa claro, uma tática firme e uma vontade única, vão se constituindo como revoltas cegas e inconsequentes.
Precisamos, em cada país, de poderosos partidos marxistas-leninistas, capazes de fazer agitação e propaganda para milhões de pessoas, unidos do ponto de vista político e organizativo, hábeis o suficiente para combinarem o trabalho legal com o trabalho ilegal.
A classe dos trabalhadores e os povos dos países oprimidos demonstraram, através da Primavera Árabe e de outras jornadas, que não mais suportam a situação em que vivem e têm disposição de luta e de sacrifício para mudar. As jornadas de luta em vários países são, também, a expressão mais clara de que o capitalismo nada mais pode oferecer à humanidade a não ser guerras, fome e miséria. Cabe à classe dos trabalhadores e a suas organizações levantar a bandeira do socialismo, alternativa concreta para transformar a atual sociedade.
Jorge Batista, São Paulo