Na manhã do dia 27 de dezembro de 2013, Serginaldo dos Santos, presidente da Central de Movimento Populares de Pernambuco (CMP), Coordenador do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e militante do PCR foi injustamente preso em sua residência. De forma agressiva, dois policiais à paisana invadiram sua casa, empurraram e ameaçaram sua filha e, depois desses atos de violência, o prenderam e o conduziram ao Centro de Observação e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel).
O mandado de prisão foi requerido em ação movida pelos donos do Shopping Center Tacaruna,(entre eles, o milionário João Carlos Paes Mendonça, também dono dos shoppings RioMar, Recife, Guararapes), que acusaram Serginaldo de “ter cometido extorsão aos comerciantes do shopping” e de que se constitui em “um perigo” para o shopping e seus consumidores.
Na verdade, o MLB organiza, todos os anos, a Jornada Nacional de Luta por um Natal sem Fome e sem Miséria, nas principais capitais do Brasil, reunindo as famílias pobres que passam necessidade, para reivindicar cestas básicas e garantir, pelo menos, uma modesta Ceia de Natal. Após sair da prisão, Serginaldo voltou a fazer aquilo que mais gosta: organizar o povo pobre para lutar por seus direitos. A seguir, o depoimento de Serginaldo Santos à reportagem de A Verdade sobre sua prisão.
“Eram aproximadamente 14h30 quando cheguei preso ao Cotel, porta de entrada do sistema penitenciário da Região Metropolitana do Recife (RMR). Depois de passar por uma revista, fui encaminhado para uma cela de triagem (espera). Ao entrar na cela (40m², com banheiro e chuveiro), me deparei com uma situação só vista nos tempos da escravidão: um amontoado de homens sentados no chão, aproximadamente uns 40, com idade entre 20 a 35 anos, todos negros, a maioria sem camisa, com os olhos arregalados e como se estivessem com o pensamento parado no tempo. De repente, um deles me pergunta por qual motivo estava ali. Respondi que estava sendo acusado de ter organizado uma ação num shopping, cujo objetivo era a conquista de cestas básicas para as famílias que vivem em ocupações por falta de teto digno para morar. Ao relatar o fato, um deles chegou a dizer: “O cara foi fazer o bem e está aqui”.
Às 17h um grupo de 30 detentos que tinham chegado no dia anterior foi levado para as celas. Fiquei sabendo, naquele momento, que geralmente o tempo de espera na sala de triagem era de 24 horas, para, em seguida, a pessoa ser encaminhada a ir para um presídio. Ao mesmo tempo que esse grupo saiu, novos presos chegaram. As 18h o chaveiro avisou a chegada da comida. Naquele momento éramos em torno de 15 pessoas. Notei que havia sete potes de sorvete espalhados pelo chão. Foi quando me dei conta de que era naqueles potes onde seria colocada a janta (batata-doce, pão, salsicha e café). Novamente a imagem da senzala veio na minha cabeça.
Após o jantar, um silêncio tomou conta da sala, e foi quando comecei a pensar mais profundamente. O primeiro pensamento foi a lembrança dos companheiros que foram presos no tempo da ditadura. Me lembrei do companheiro Manoel Lisboa e dos outros companheiros do PCR, e na memória também veio a lembrança do livro Testamento sob a forca, que relata a prisão de Júlio Fuchik, revolucionário tcheco. Sabia que minha situação nem de longe se comparava ao que esses companheiros passaram na prisão, pois pagaram com suas próprias vidas por lutar pela liberdade e pelo socialismo. No entanto, devia seguir seus exemplos de altivez. Outro motivo que me dava força era saber que não estava só, sabia que, contra a injustiça cometida contra mim, os companheiros e companheiras se levantariam pela minha liberdade. Lembrei-me do poema “As gerações futuras”, do companheiro Emanuel Bezerra, escrito quando estava preso, no qual ele diz: Meus soldados não se rendem, o grande dia chegará”. Um pensamento de indignação também tomou conta de mim ao lembrar os momentos da minha prisão na minha casa e o abusos cometidos pelos policiais contra meus filhos, mas também um sentimento de orgulho por eles terem resistido àquela situação sem se intimidar.
Depois de muito tempo sem comunicação, recebi um lençol e uma bermuda. De pronto emprestei a bermuda a outro detento. Procurei dormir, mas bateu uma ansiedade. Sento e observo em silêncio cada um ao meu redor, até que surge a ideia de lavar a sala, e todos participam. Deito no chão e procuro dormir; rolo pra um lado e pro outro, e o sono não vem. Durante toda a madrugada chega gente. Às seis horas o sol bate na cela, e percebo que já somos quase 20. Chega a hora do café da manhã (pão e café), e novamente pegamos os potes e dividimos a comida. No presídio, é dia de visita conjugal, e um detento alerta para os novatos para não olhar para as mulheres, não levantar a camisa, nem coçar o saco; são as regras da prisão.
O tempo passa e continuam a chegar mais presos. Todos os que chegam deixam a sandália no banheiro e vão direto pro chuveiro, (eles dizem que é pra tirar as mazelas da rua). Todos que chegam (na maioria por tráfico) são questionados por que caíram. De novo também me perguntam por que estou ali, e relato novamente o motivo, e a reação é de surpresa. Aproveito também para dizer que sou professor de História, e, daí pra frente, sou tratado como professor.
Chega pra mim uma sacola de roupa e material de higiene (começo a pensar, pela quantidade das peças, que minha prisão iria se prolongar). Nesse momento ofereço, para uso coletivo, o sabonete, o desodorante e a pasta de dente. Fico a maior parte do tempo calado até que sou provocado a falar.
Um deles pede que eu fale sobre História, que ali alguns estudaram e outros não. Provocado, começo a dizer que eles são vítimas do sistema, que ninguém nasce bandido, falo da verdadeira causa de eles estarem ali. Falei pouco, mas pelo balançar da cabeça e a satisfação expressada por vários deles, senti que fui compreendido, chegando alguns a comentar que eu poderia dar aula e receber por esse trabalho. Era possível perceber neles um sentimento de respeito e desejo de que eu saísse da prisão. Fui chamado para tirar foto, e, em seguida, novamente chamado, para fazer o exame médico.
Chegou a hora do almoço (feijão, arroz, carne guisada). Já éramos 35 presos, com os mesmos sete potes, as colheres improvisadas com o que sobrou de uma garrafa pet, já que a outra era de uso coletivo para se beber água. Depois do almoço, decidiu-se novamente lavar a cela, e, com o pedaço de sabonete que eu dei, foi feita uma água detergente. Terminada a lavagem, sentamos todos no chão, olhos para os quatro cantos, e novamente a imagem da senzala se repete. Vejo aproximadamente 40 pessoas; dessas, 38 são homens negros, de idade entre 20 e 35, mais da metade sem camisa. Sem comunicação externa. Muitos reincidentes, presos por tráfico (a maioria por maconha, uma quantidade menor por crack).
Às 17h sou chamado, pelo chaveiro, para falar com meus advogados (Marcelo Santa Cruz, Abnes Canário, Luiz Carlos, Vinícius Campos), e recebo a notícia do meu habeas-corpus. Também sou informado de que muita gente estava à minha espera.
Voltei para a cela, disse aos presos quem eu era, da minha luta, por que estava ali, e que naquele momento estava saindo. Desejei um feliz ano-novo (mesmo naquela situação), e o que estava na minha sacola (calça, camisa, lençol, material de higiene) dei a cada um dos que continuaram presos.”
Serginaldo Santos, Recife