Muita confusão se faz entre o “software livre” (“free software”) e o “software de código aberto” (“open source software”).
O fato de o software não ser proprietário não significa que este seja, necessariamente, livre; pode ser apenas de código aberto, que é um modelo de negócio, como o Linux Internacional, mais avançado em termos de propriedade intelectual, mas longe de ser um “software livre”.
O chamado software livre está muito além de um simples modelo de distribuição e desenvolvimento de programas de computador; é uma filosofia carregada de conteúdo ideológico. Filosofia porque tem como fundamento a liberdade do conhecimento como elemento moral, ético e social. Ideologia porque apresenta uma mudança nas relações de produção.
Nos anos 1960 até meados dos anos 1970, não havia um mercado estruturado para o software. O hardware era o produto vendido, os sistemas operacionais acompanhavam o hardware. Como fazia a IBM, que, juntamente com o computador, disponibilizava os códigos-fontes dos programas, que podiam ser alterados e redistribuídos livremente; os grupos de usuários como o SHARE (IBM) participavam e até organizavam o intercâmbio entre os usuários. Nessa etapa, os softwares tinham uma construção específica para um determinado fim, e, quando havia melhoria na construção, a mudança no programa era normalmente trocada entre os usuários. Isto envolvia não só as organizações, mas também as universidades e centros de pesquisa, sem preocupação com os direitos de propriedade intelectual.
Era muito comum a troca de experiência entre os programadores. Quando um programador desenvolvia uma determinada rotina, outros a recebiam como uma inovação, e, a partir do conhecimento do código-fonte, este era introduzido em outros programas. Logo, havia o compartilhamento das soluções tecnológicas, transformando o esforço individual em produção coletiva.
No fim da década de 1970 e durante os anos 1980, a AT&T mudou radicalmente sua política, restringindo a liberdade de modificação do código-fonte do Unix até o ponto de processar judicialmente a Universidade da Califórnia por publicar o código do Unix. O termo “Unix” se tornou uma marca, o que levou as concorrentes – como a IBM, HP, Digital e SUN – a desenvolverem seus próprios produtos. Esta diversificação acabou com a possibilidade de um mesmo sistema poder operar em todos os equipamentos.
O conflito de maior significado se dá em 1983. Stallman, um programador do laboratório de inteligência artificial do MIT (Massachusetts Institute of Technology), vê-se em dificuldade para a impressão de seus trabalhos em uma impressora laser substituta de uma antiga impressora matricial, que tinha seu código adequado à natureza do trabalho realizado pelos técnicos do MIT, o que não acontecia com a nova impressora laser da Xerox. Stallman entra em contato com o fabricante da impressora e pede para inserir as modificações na impressora matricial. Após longa negociação, o fabricante cedeu, com a condição de que fosse firmado um acordo de sigilo pelos programadores.
No nosso estágio evolutivo, uma sociedade que procura a liberdade tem que avançar para novas concepções de liberdade, indo além das definições tradicionais de liberdade econômica, política e intelectual. Este fenômeno pode ser bem compreendido a partir do pensamento de Marx e Engels sobre este processo de desaparecimento do antagonismo entre classes; em nosso caso, proprietário do software e usuário deste:
“O que demonstra a história das ideias, senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram apenas as ideias da classe dominante. Quando se fala de ideias que revolucionam uma sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio da velha sociedade, formaram-se os elementos de uma nova sociedade, que a dissolução das velhas ideias marcha de par com a dissolução das antigas condições de vida”.[1]
A concepção proprietária traz consigo toda a carga de alienação da propriedade privada, compra consciências e anula sua própria consciência, como escreve Basbaum[2]:
“O capital gera a competição, a luta mortal do homem contra o homem. O amor é substituído pelo ódio, a paz pela guerra e pela violência. Porque como dono, ele não mais se pertence, pertence ao capital que passa a estimular e a motivar os seus atos. É um instrumento do sistema. Em troca dessa alienação, ele ‘goza a vida’, mas perdeu para sempre sua alma e sua consciência. No ato de ter, ele deixa de ser”.
Dentro desta visão da tecnologia como fator de humanização e não de apropriação, seguem quatro questões fundamentais para que um programa seja considerado software livre:
1) Liberdade para executar o programa, não importando o propósito.
2) Liberdade para estudar o programa, para adaptá-lo conforme suas necessidades, o que torna o conhecimento do código-fonte essencial; caso contrário, esta tarefa se torna uma “missão impossível”.
3) Liberdade para reproduzir e redistribuir cópias, tanto de forma gratuita, como com a venda da cópia.
4) Liberdade para aperfeiçoar o programa e distribuir as suas versões modificadas, de modo que toda a comunidade se beneficie com suas melhorias; neste caso, o acesso ao código-fonte também é essencial.
Um programa só poderá ser considerado livre se todos os seus usuários desfrutarem desses quatro graus de liberdade.
Joaquim Adérito, pesquisador do INPI e militante do MLC
[1] Marx, Engels, “Manifesto do Partido Comunista”, capítulo “Proletários e Comunistas”- Martin Claret, 2004.
[2] Basbaum, Leôncio, “Alienação e Humanismo”, Capítulo”Da Alienação”, Editora Símbolo, 1977.