Após meses de silêncio, a grande mídia começou a noticiar a existência (e os conflitos) dos chamados “rolezinhos”. Mas quem são, afinal, os jovens que participam dessas manifestações?
Inicialmente, são adolescentes da periferia e de comunidades pobres, uma parte de férias escolares, outra já na fase final da adolescência, que vivem suas primeiras experiências no mercado de trabalho. Não têm gastos maiores com casa, nem família para sustentar, pois moram com os pais. Marcam encontros para paquerar, ouvir o funk que toca nas rádios e fazer outras coisas que jovens de qualquer grande cidade fazem. Antes, marcavam esses encontros nos bairros onde moravam; depois, nos centros comerciais e shoppings tradicionalmente frequentados pela classe média das grandes cidades brasileiras.
Com os contatos feitos por meio de redes sociais, o número de convidados aumenta e o de participantes também.
Esses jovens, porém, passaram a ser recebidos como bandidos e considerados de “alto grau de periculosidade”. No mês de novembro passado, um rolezinho foi anunciado como “arrastão” em Vitória (ES). Em São Paulo, os jovens foram recebidos violentamente, inicialmente pelos seguranças dos shoppings e depois pela Polícia, em alguns casos com direito à Tropa de Choque, bombas de efeito moral e gás de pimenta. Mais de 20 jovens foram detidos, apesar de nenhum roubo, furto ou saque ter sido registrado.
A população ficou dividida, mas não indiferente. Uma parte da classe média se dizia “ameaçada”, com medo dos “arruaceiros” e dos supostos arrastões. O representante de um grupo de shoppings em São Paulo, Nabil Saynoun, afirmou que “esse movimento tem que ser respeitado em seu lugar específico; shopping não é lugar para essas pessoas”. Disse ainda que esses jovens deveriam ir se divertir no sambódromo, que é lugar para eles!
Façamos uma reflexão: quais são os critérios tomados em consideração para definir esses jovens como “perigosos”? Não seriam aspectos de aparência, como cor da pele (sendo esses em sua maioria negros) e seus comportamentos, classificados como de “favelados”? A roupa não necessariamente é um critério, pois cada vez a moda de adolescentes das diversas classes se parece mais (o que muda é ser de marca “original” ou falsificada)… Com o recente aumento do poder aquisitivo de uma camada da população, tanto playboys quanto favelados usam o tênis da moda (seja ele autêntico ou não), ou usam o boné do momento. Até mesmo o funk, hoje o funk ostentação, há anos é consumido pelos filhos da classe média. Alguém já ouviu alguém dizer que teve medo da multidão de jovens na saída de uma micareta? Aí ninguém tem medo.
Mas fazemos a pergunta: apesar de privados, os shoppings são abertos ao público e, segundo a Constituição Federal, nenhum cidadão pode ser discriminado em espaços públicos (ou em qualquer outra circunstância) por classe social, raça, gênero, crença religiosa, etc…? Por isso, existe a outra parte da população, indignada com a discriminação social e racial sofrida por esses jovens ao serem negros e pobres. Aqueles que se colocaram contra dizem que é um absurdo serem assim acusados, que não é uma questão de racismo, que é uma questão de “bom senso”, pois lá não é lugar para eles…
A cultura discriminatória no Brasil
Tal nos remete a um trecho do livro O feitor ausente, de Leila Mezan Algranti, onde a autora fala da chegada de imigrantes europeus pobres tentando fugir das guerras e da fome. Eles tinham baixa escolaridade e eram na maioria camponeses. Ao chegarem, eram orientados a não realizar trabalhos considerados inferiores e, portanto, “trabalho de pretos”. Esses imigrantes rapidamente eram estimulados a se tornarem profissionais liberais e a comprar dois ou três escravos para ajudar a sua economia familiar, o que dava certo status social.
Hoje a situação se inverte. Após mais de 400 anos de escravidão da população negra no Brasil, podemos perceber que a ideologia da classe dominante deu as mãos ao racismo, tornando-o um importante braço para fortalecer a discriminação. Ele ajuda a fortalecer a ideia de “superioridade” de uns e “inferioridade” de outros; utiliza diferenças humanas para ajudar a justificar diferenças sociais; faz algumas pessoas se sentirem menos por sua cor de pele, tipo de cabelos, cor dos olhos ou por religião (e tantas outras se sentirem superiores pelos mesmos motivos); ajuda a “colocar cada um no seu devido lugar”, dando força para um componente de extrema importância num sistema de dominação de classes, que é a ideologia; define quem é “a feia” e quem é “o bonito”, sempre fortalecendo esta mesma ideologia de classe, só que dando cara e cor a tudo isso, diversas vezes justificando a discriminação, a opressão e a exploração.
O racismo é, portanto, parte importante da ideologia da classe dominante em nosso país, que, por ser dominante, acaba se expandindo para as outras classes; racismo este que serviu como fundamental alicerce ideológico no período de colonização do Brasil, ajudando a justificar a escravidão e, depois, deu as mãos à burguesia nascente na Primeira República, assumindo seu papel na discriminação que dá suporte à ideologia burguesa (é sempre mais “aceita” a exploração de um inferior). Na verdade, tudo isso nunca deixou de existir no Brasil. Instaurou-se um racismo mascarado, camuflado atrás de argumentos “politicamente corretos”, ou tergiversando com outros argumentos; e o discriminado foi educado para “deixar pra lá e não falar mais no assunto”. Pessoas que ascenderam socialmente, ao tentar ingressar em ambientes tidos como “de classe média”, ainda sofrem discriminação, mas geralmente são devidamente “abafados” com justificativas falsas, fortalecendo a ideia de que no Brasil essas coisas não acontecem.
A luta de classes e a dominação ideológica
Tanto Marx, em sua Lei geral da acumulação capitalista, quanto Lênin, em diversas obras, lembram que, com o desenvolvimento do capitalismo, as contradições de classe se tornam mais evidentes, acirrando a luta de classes no mundo. Vimos o capitalismo e sua ideologia se desenvolver no Brasil nas últimas décadas como nunca antes visto na história do nosso país. Nossas principais riquezas foram privatizadas e vendidas às multinacionais, o sistema financeiro internacional se apoderou daquilo que ainda restava da nossa economia, aprofundando as contradições de classe e, consequentemente, também as ideológicas.
Porém, como vimos nos últimos meses, o desenvolvimento do capitalismo escancara suas contradições e tira as máscaras da sua ideologia, que fortalece a opressão do homem pelo homem. Com as manifestações de junho, vimos que a população brasileira não está mais disposta a sofrer calada a opressão, a discriminação e as injustiças. O caso de Amarildo foi emblemático, e sua família e vizinhos resolveram se manifestar publicamente dizendo “Quando nós, moradores da favela, pretos e pobres, somos torturados e assassinados injustamente, nada acontece. Chega de impunidade!”. Foram apoiados pela opinião pública, e em manifestações por todo o país.
Da mesma forma, o rolezinho se tornou um movimento nacional, com manifestações em shoppings das principais cidades do país. O rolezinho se tornou uma forma de luta, uma expressão daqueles que não toleram mais a discriminação, o racismo, a opressão sofrida por séculos, em silêncio.
Eloá Nascimento, Rio de Janeiro