“E a mãe destas tabas
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror …”
Gonçalves Dias, “Y Juca Pirama”
O primeiro problema sobre que nos debruçamos com referência à matéria é o da própria conceituação do que vem a ser “terrorismo”.
Houve quem chamasse de terroristas os atos individuais desligados das massas: outros repeliram os atos que afetassem à população civil. Mas talvez a melhor caracterização tenha sido a de um jovem que disse: “ Tio, terrorista é sempre o outro…” Como negar ao FLN ou ao Viet Cong o direito de atacar os bares franceses e americanos em Argel e Saigon só porque lá havia prostitutas civis, ou o direito dos palestinos de se imolarem por sua terra quando nenhum outro caminho lhes restava ?
Na verdade, os ingleses chamavam George Washington de terrorista, para os partidários do apartheid Mandela era terrorista, e Hitler acusou a RAF de terrorismo. Sempre o outro.
Não há como negar que o terror é componente necessário dos atos de guerra, por mais legítimos que sejam, e que faz parte dos mecanismos de controle estatal, desde a coerção legislativa até o paroxismo do terror de Estado.
O que importa, porém, é o significado concreto de terrorismo e anti – terrorismo em cada situação histórica. Não estamos lidando com abstrações, mas com realidades presentes e palpáveis. Aqui e agora.
Concretamente, a inclusão do “terrorismo” como crime hediondo na Constituição Federal de 1988 foi imposição da direita, ante a inclusão do crime de tortura. Vale salientar que, em 1988, nem sequer havia legislação ordinária sobre tortura no país. Incluindo “terrorismo” e tortura como crimes hediondos, a Constituição não fazia mais que adotar a famigerada teoria dos dois demônios: criminosos seriam os que resistiram de armas na mão contra a ditadura militar, da mesma maneira que os torturadores. Ambos seriam demônios a que havia que exorcizar. O termo “terrorismo” foi usado com a mesma conotação que lhe dava a ditadura militar.
Assim, ignorava-se solenemente que o golpe de 1964 tinha sido desferido contra a Constituição vigente, tornava-se inexistente o direito de resistir contra a opressão.
Mais tarde, sob o impacto do atentado às Torres Gêmeas em Nova Iorque, episódio no mínimo propiciado pelo apoio dos Estados Unidos aos fundamentalistas islâmicos da Al Qaeda, construiu-se a doutrina da Guerra ao Terror.
Terror que era definido como o “outro” dos interesses das elites dos Estados Unidos, de forma propositadamente vaga, para que no conceito fosse incluído tudo que interessasse a essas elites.
Dentro dessa doutrina, até a guerra de agressão, repelida universalmente desde os julgamentos de Nuremberg após a II Guerra Mundial, passava a ser admitida sob a roupagem de “guerra preventiva”, naturalmente quando fosse movida contra o “outro” das elites americanas.
Seguiu-se toda uma legislação, como o “Patriotic Act” e leis de exceção semelhantes em todo o mundo, inclusive a nível dos tratados internacionais.
Essa tendência hipócrita é nitidamente anti – democrática, e visa à paralisia do progresso social da Humanidade, mantendo-se o atual estado de coisas imutável como numa nova Idade Média.
Como os movimentos sociais não dependem da super – estrutura das normas jurídicas impostas, logo se acentuou sua contradição com essa super – estrutura a nível mundial. O pragmatismo sempre estabeleceu que o que é bom e verdadeiro é o que interessa aos proprietários, mas a realidade social não toma conhecimento disso nem a isso é vassala.
É neste contexto que ocorre a tramitação da “lei anti – terror” no Brasil. Tudo o que foi dito anteriormente se aplica, até a doutrina da “guerra preventiva”. Em um primeiro momento, definiu-se “terrorismo” da mesma forma que a ditadura militar. Ante a reação dos movimentos sociais, estuda-se uma outra forma dessa definição, calcada nos atuais tratados internacionais. Não se pode mascarar o objetivo da lei, porém : trata-se da repressão ao direito de manifestação e do favorecimento espúrio de um evento comercial chamado Copa do Mundo.
A cidadania é claramente atacada pela legislação repressiva.
E essa mesma cidadania continua desvalida ante o abuso de autoridade.
Não se afigura justo, nem sensato, que se insista no aperfeiçoamento da lei anti- terror. A própria Constituição está conspurcada pela hipócrita inclusão do “terrorismo” como crime hediondo.
É necessário equilíbrio entre as normas de proteção contra deturpações nas manifestações populares e contra o abuso de autoridade.
Não se justifica que as penas cominadas nos dois casos sejam tão díspares: deveriam ser iguais.
Se concordamos que não deve haver abusos por parte dos manifestantes, também devemos concordar que as penas cominadas para o abuso de autoridade no Brasil passem a ser de 2 a 8 anos de reclusão, como na lei anti – terror.
É do mais claro interesse de qualquer governo democrático – e de toda a sociedade.
Silvio Mota, Juiz do Trabalho e Membro da Associação Juízes para Democracia