No dia 30 de outubro de 2007, quando a Fifa anunciou de maneira oficial o Brasil como sede da Copa de 2014, o Estado brasileiro assinou um contrato com uma das mais corruptas organizações em atividade no mundo. A comitiva enviada a Zurique, Suíça, para firmar esse pacto, demonstrou o compromisso dos capitalistas brasileiros com o evento e afastou, desde o início, qualquer pretensão de popularizar o campeonato. Lá estavam, além do presidente Lula, dois candidatos a presidente da velha e da nova direita: Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB). Estavam também José Serra e José Roberto Arruda, o primeiro investigado por corrupção no metrô de São Paulo e o segundo, filmado e provado como corrupto, foi expulso do Governo do Distrito Federal anos depois.
Estavam acompanhados de Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF) e Nicolás Leoz (ex-presidente da Conmebol), ambos afastados das presidências dessas entidades e dos cargos de membros da Fifa após provadas acusações de que receberam propina na escolha das sedes da Copa e de que participaram de fraude nos contratos de publicidade com a empresa ISL, juntamente com João Havelange, o brasileiro ex-presidente da Fifa.
Da descrição dos personagens podemos prever o roteiro da história. A Copa da Fifa é, no Brasil – assim como foi em todos os países onde se realizou até hoje –, um conluio da classe capitalista nacional e internacional com uma organização mafiosa que controla os clubes e federações de futebol. Uma festa onde o povo é convidado a assistir de fora, enquanto eles roubam na construção dos estádios, na venda de ingressos, pacotes turísticos e contratos publicitários.
Empreiteiras lucraram milhões com obras
Logo o Governo Federal anunciou as obras que seriam necessárias para receber a Copa. Em todas as 12 cidades-sedes foram construídos ou completamente reformados novos estádios.
Até mesmo o Estádio do Maracanã, que, há poucos anos, foi reconstruído para a realização dos Jogos Pan-Americanos, foi de novo reconstruído pelo custo de R$ 1,2 bilhão. As empreiteiras (Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Andrade Gutiérrez, etc.) ficaram muito felizes.
Ao todo foram gastos R$ 8,32 bilhões na construção de estádios, R$ 2,28 bilhões a mais do que estava inicialmente previsto nos orçamentos. É de destacar o caso do Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Com custo inicial previsto de R$ 745 milhões, as verbas para o estádio tiveram um aumento de 110%, passando o valor inicial a R$ 1,56 bilhão, o que transformou o Mané Garricha numa das praças de esportes mais caras do mundo. E, como na maioria dos estádios da Copa, as obras do entorno estão atrasadas.
As empreiteiras souberam retribuir a gentileza. Apesar de 2013 não ser ano eleitoral, esse foi o ano em que as empreiteiras mais doaram dinheiro aos partidos políticos no Governo. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o PT recebeu, no ano passado, R$ 79,8 milhões de empresas privadas, sendo 65% desse dinheiro oriundo de empreiteiras. Partidos que controlam os governos estaduais também receberam sua parte: R$ 20,4 milhões para o PSDB (86% de empreiteiras), R$ 17,7 milhões para o PMDB (71% de empreiteiras) e R$ 8,3 milhões para o PSB (88% de empreiteiras).
Das 149 obras previstas no plano inicial da Copa, 39 eram relacionadas à segurança, e essas estão quase todas concluídas, o que mostra que a prioridade é mesmo o aumento da repressão. Outras 42 obras estavam relacionadas à ampliação e reforma de portos e aeroportos; como sabemos, os recursos públicos investidos nessas obras servirão ao lucro de empresas privadas, já que os portos e aeroportos estão sendo privatizados através do regime de concessão.
Para o principal problema das grandes cidades, a mobilidade urbana, foram planejadas 65 obras, mas destas apenas 26 tratavam da construção de vias de ônibus BRT, Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) e metrô – ou seja, obras que, de fato, atacam o problema do transporte coletivo. Dessas, 10 obras foram abandonadas (quase a metade) e várias estão atrasadas.
Todos esses números servem para provar que o objetivo das obras da Copa não é deixar nenhum legado de benefício para o povo, mas sim enriquecer as empreiteiras e concessionárias privadas.
O roteiro de realização da Copa em um país se repete a cada quatro anos, no fundamental, da mesma maneira desde a década de 1970, quando a Fifa se transformou em uma máfia internacional sob o comando de João Havelange.
Como denunciou o jornalista Andrew Jennings em seu livro Um jogo cada vez mais sujo (recém-lançado no último mês de maio), um determinado país é escolhido ao custo de muita propina paga aos membros das confederações continentais. Depois disso, anuncia-se que a Copa gerará um grande legado, muitas obras e desenvolvimento econômico com quase nenhum dinheiro público gasto. Passam-se os anos, e os membros da Fifa (Joseph Blatter e Jerôme Valcke) visitam o país para fazer críticas públicas sobre o atraso nas obras, pressionando o Governo a gastar dinheiro do povo com o evento. Foi assim na Alemanha, em 2006, na África do Sul, em 2010, e não poderia ter sido diferente no Brasil.
A Copa do trabalho precário e da prostituição
Todos os operários mortos em obras dos estádios da Copa trabalhavam em empresas terceirizadas, em regime de trabalho que, muitas vezes, superava as 10 horas diárias, como revelou a investigação do Ministério do Trabalho após os desabamentos no estádio em Itaquera. Terceirizar a mão de obra foi a forma encontrada pelas grandes empreiteiras para não assumir a responsabilidade pelo sangue de trabalhadores derramado em vários estádios.
Em setembro de 2013, fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 111 trabalhadores em situação de escravidão nas obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos, o maior do Brasil. Eles foram aliciados nos Estados do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco, e ficaram alojados em situação degradante nos arredores de Cumbica. A obra é de responsabilidade da empreiteira OAS, mas a empresa transferiu para uma terceirizada a responsabilidade pela contratação desses trabalhadores.
Todos os indícios apontam também para o crescimento do turismo sexual e da prostituição, inclusive infantil, no período da Copa.
Muitas empresas de turismo vendem pacotes que incluem exploração sexual disfarçada para o público europeu. Casas de prostituição de São Paulo já anunciam seus serviços através de outdoors. Durante a Copa das Confederações, no ano passado, até os jogadores da Seleção da Espanha se envolveram em disputa com a gerência de um hotel por tentarem levar prostitutas para os quartos.
Como denunciou a agência de notícias Pública (http://apublica.org/) na reportagem Meninas em Jogo, uma rede de prostituição que existe no Ceará e tem ligações com políticos brasileiros e investidores italianos tem fortalecido sua atuação às vésperas da Copa, aliciando menores de idade nas cidades mais pobres do interior e levando-as para bordéis em Fortaleza ou lugares turísticos como Canoa Quebrada.
Nenhum centavo dos recursos da Copa, no entanto, serviu para fortalecer os conselhos tutelares ou para aplicar medidas de educação e trabalho que possam combater a prostituição infantil.
A Lei Geral da Copa ataca a soberania do País
O esquema obscuro de venda de ingressos é a forma através da qual os dirigentes da Fifa mais ganham dinheiro. Milhares de ingressos são vendidos de maneira casada na Europa, inflacionando os preços de hospedagem e transporte. Essa prática, aliás, fez ficarem vazios os estádios da África do Sul, obrigando o Governo de Pretória a comprar os ingressos que sobraram.
Já temos sofrido com uma enorme alta nos preços dos aluguéis e de praticamente todos os serviços, fruto da especulação imobiliária e dos donos de empresas nesse período que antecede a Copa.
Dessa maneira, praticamente todo o dinheiro que circula através do turismo, venda de ingressos, comércio de itens relacionados à Copa, etc., vai parar mesmo é no bolso da Fifa e dos monopólios que a patrocinam.
Com a aprovação da Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663/12), em junho de 2012, o Congresso Nacional realizou uma das maiores ofensas à soberania do Brasil, praticamente alugando o país à Fifa.
A Lei Geral da Copa retirou o direito à meia-entrada dos estudantes (artigo 26); restringiu todo o comércio no entorno dos estádios, estabelecendo como território da Fifa essas regiões (artigo 11); impediu as transmissões públicas dos jogos em espaços não autorizados pela Fifa (artigo 16, inciso IV); tornou o Governo responsável por qualquer dano causado ao patrimônio da Fifa durante o evento (artigos 22, 23 e 24); e estabeleceu regime especial para registro de marcas em favor da Fifa, que logo registrou marcas como Brasil 2014, Natal 2014 e até Pagode. Quem queira usar esses nomes terá que pagar à Fifa (artigos 4 a 7).
Para tornar ainda mais eficaz o aparato repressivo, o Governo brasileiro contratou, no mês de março, a empresa estadunidense Blackwater para realizar treinamento com policiais brasileiros. Essa empresa de mercenários de guerra é uma das mais usadas pelo Governo dos EUA na perseguição ao povo do Iraque e Afeganistão.
Dia 12 de junho, acontece a abertura de uma Copa da Fifa na qual não temos nada a ganhar. Os trabalhadores e o povo brasileiro, no entanto, conseguiram marcar um gol de placa que servirá para mudar o resultado no decorrer da partida que vamos continuar jogando.
Foi um gol convertido por centroavantes como os garis do Rio de Janeiro, do ABC Paulista e de outros estados. Por atacantes como os rodoviários de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. Um gol preparado por meias-armadores como as famílias da ocupação Eliana Silva (Belo Horizonte), da ocupação Copa do Povo (São Paulo) e da Telerj (Rio de Janeiro). Ajudaram na armação da jogada os volantes da juventude rebelde e do movimento estudantil, que ocupam as ruas desde junho do ano passado.
Ao marcar esse gol, passamos a viver um novo momento na partida por um Brasil justo e soberano. Nosso time está ocupando o campo de ataque e tem mais consciência da sua força e capacidade de vencer. É o momento de avançarmos ainda mais e mostramos que é possível virar esse jogo.
Sandino Patriota, São Paulo