Neste mês de julho comemoramos 24 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Há um movimento midiático e conservador que tenta deslegitimar a sua importância, com argumentos que não consideram o que o ECA representa para as crianças e para os adolescentes brasileiros – principalmente aos pobres, periféricos e em situação de vulnerabilidade. Por isso, fazemos um convite para revisitar a nossa história.
Um pouco da História Social da Infância Brasileira
Nem sempre, ao longo da história, existiu o conceito de criança ou de adolescente como nós utilizamos nos dias de hoje. Até os anos de 1500, na baixa Idade Média, não existia infância ou adolescência. Talvez, para entendermos isso, nem precisamos voltar 500 anos na história. Basta resgatar a história de nossas famílias, com nossos avós ou bisavós, perguntando com qual idade eles começaram a trabalhar ou com qual idade se casaram, constituíram família.
Essas duas etapas da vida, com suas necessidades, prioridades e especificidades não existiam. Elas eram excluídas em todos os sentidos e esferas da vida, quer seja familiar, moral ou econômico. É a partir de 1600 que a noção de criança começa a aparecer; adolescente, somente em 1900.
A primeira demonstração oficial de interesse público pela criança no Brasil data de 1693, com o envio de uma carta da Coroa Portuguesa ao Governador da Capitania do Rio de Janeiro. Reproduzindo um pouco das ideias escritas na carta, ela dizia sobre a pouca piedade que existia com as crianças enjeitadas, sendo que muitas eram achadas mortas ao desamparo, sem que a misericórdia as recolhesse, dizendo não terem rendas para cria. Dessa forma, o Rei ordena que sejam criadas obras pias destinadas a recolher e manter os abandonados.
A partir daí, temos início a uma fase de atendimento à criança enjeitada, conhecida por filantrópica. Isso quer dizer que o que mobilizou os nossos colonizadores, a partir da escrita desta carta, a destinar algum recurso para recolher crianças recém-nascidas ou ainda bebês que eram abandonadas para não deixá-las ao relento, foi apenas um sentimento baseado na piedade e na caridade. É assim que com as doações de nobres e ricos comerciantes, além de uma ínfima parte das riquezas exploradas e usurpadas do Brasil Colonial, foram destinadas às Santas Casas de Misericórdia existentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, para que fossem criadas as Rodas dos Expostos.
As Políticas de Atendimento à Criança e Ao Adolescente no Brasil
As Rodas dos Expostos (símbolo da filantropia na época) existiam desde os anos de 1500 na Europa. Eram compostas por um mecanismo com uma portinhola que, ao ser aberta, revelava um cilindro embutido na parede, que girava 180 graus. Para funcionar, bastava acomodar a criança no interior desse cilindro e girá-lo, passando o bebê para o interior do prédio. Quem deixava a criança tocava uma campainha, acionando um sinal sonoro no dormitório das freiras. Uma delas, então, recolhia a criança e providenciava sua internação. A imagem abaixo é um exemplar que funcionava em Portugal.
A taxa de mortalidade das crianças que eram deixadas na Roda chegava a 70% e, ao contrário do que se possa imaginar, muitas delas não eram crianças oriundas de famílias pobres que não possuíam provisões para criá-las. Muitas vinham de famílias abastadas, mas eram frutos de infidelidade da mulher; filhos de mães solteiras ou das próprias freiras; filhos de senhores com escravas; entre outros casos. Na grande maioria das vezes, caso sobrevivessem, todas permaneciam internadas até serem encaminhadas para famílias que as mantinham como agregadas, como criadas ou serviçais.
A partir dos anos de 1850, o modelo filantrópico começou a ser permeado por uma política higienista, na qual a legislação procurava garantir procedimentos em relação ao parto, à mãe e criança. Desta informação poderíamos supor um avanço, mas fato é que esses cuidados seguiram um rumo bastante controverso: a tentativa de arbitrar na vida reprodutiva das famílias que recebiam qualquer subsídio assistencial para a manutenção de sua vida material. Teorias conservadoras defendiam a esterilização de mulheres pobres que procriassem, por exemplo.
É nesta época que é construída a ideia de “menor” para nomear as crianças e os adolescentes imersos na situação de pobreza na sociedade brasileira. Até o fim de 1800 a palavra “menor” não tinha um significado negativo. Até então menor era palavra utilizada para se definir as pessoas de acordo com a faixa etária. Até meados de 1900, então, menor era sinônimo de criança, adolescente ou jovem que, pela idade, ainda não podiam contrair determinadas responsabilidades (ser responsável por si, casar, ter responsabilidades civis e canônicas).
Já nos anos de 1900, as contradições do processo de industrialização e de expansão não estruturada das cidades, a palavra “menor” passou a ter um significado negativo, que estava ligado à pobreza. Não foi por indicar uma condição de privação econômica e social que o termo passou a ser pejorativo; mas pelo fato da pobreza ser interpretada quase como sinônimo de delinquência e de abandono.
Para os legisladores e juristas da época, os menores eram um problema social que precisava ser combatido. Foi assim que a palavra deixou de ser uma designação de característica etária e adquiriu valores ligados aos aspectos sociais, qualificando crianças e adolescentes desprovidos de condições materiais e em situação de abandono.
Crendo na probabilidade de esses sujeitos incorrerem em atividades ilícitas e criminosas, no começo dos anos de 1900, o Brasil começou a pensar em formas de “proteger” os menores de caírem no banditismo, apesar de não ter qualquer prova ou estudo relacionando diretamente pobreza e delinquência. De qualquer forma, as crianças e os adolescentes pobres sofriam com essas determinações.
É neste momento que ocorre a aprovação do primeiro Código de Menores, de 1927, marcando a fase de atendimento que alguns estudiosos denominam Assistencial. Aqui ocorreu a regulamentação de todas as instituições filantrópicas, que até aquele momento se encarregavam dos “abandonados” e “desvalidos”, pelo Juizado de Menores. Dessa forma, o Estado passou a se responsabilizar pela tutela das crianças e dos adolescentes, com o objetivo de manter a “ordem pública” e o “patrimônio” que este contingente parecia ameaçar. Apesar dos legisladores identificarem que a miséria era motivadora de abandonos e poderia ser responsável pela delinquência, optaram em atribuir ao Estado uma função paternalista ao invés de problematizar as incontáveis contradições do sistema capitalista.
Importante frisar, ainda, que até aqui a criança e o adolescente jamais tiveram um status social de sujeito. Sempre foram tutelados, tratados enquanto sujeitos passivos e sem qualquer garantia de que sua vontade e anseio pudessem ser considerados. Não eram tratados como sujeitos em desenvolvimento que precisam, paulatinamente, serem preparados para a vida adulta. Eram tutelados, simplesmente. Não tinham direito à voz.
Em dezembro de 1964, a inoperância do sistema assistencial resultou na extinção das instituições filantrópicas e das Rodas dos Expostos que existiam país a fora. É nessa ocasião que se inaugura uma nova fase de atendimento: a Institucional, com a criação da FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor), subordinada ao Serviço de Apoio ao Menor (SAM) existente desde 1940. A FUNABEM era vinculada à Escola Superior de Guerra e, portanto, fortemente influenciada pela Ideologia da Segurança Nacional.
A Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que fora criada em âmbito nacional pela FUNABEM e implantada nos Estados Brasileiros logo no início dos anos 70. A FEBEM foi uma política pública, amplamente propagandeada no período da Ditadura Civil- militar (1964-1985), que serviria como abrigo aos carentes e como casa correcional aos infratores. No entanto, a FEBEM não conseguiu, ao longo de sua história, efetivar as questões que se propunha em seu estatuto: proporcionar tratamento específico aos menores que teriam sido atingidos pelo processo de marginalização. O carro chefe deste tratamento era o confinamento, em um sistema de internato. Além disso, ao longo de sua história, a instituição esteve entre as manchetes de jornais e foi denunciada sobre os maus tratos, espancamentos, a violência psíquica, violência sexual e múltiplas violações. Todos esses elementos ocasionaram na falência deste modelo.
Em 1990, frente aos problemas apresentados pelo desgastado modelo institucional da FEBEM e frente às lutas que surgiram e propunham outro paradigma para a questão da criança e do adolescente, foi sancionada a Lei 8.069 em 13 de julho de 1990. Conhecida como ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), ela regulamenta uma série de direitos garantidos a partir da Constituição de 1988. Sua importância está em proclamar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, colocando-os como prioridade da sociedade brasileira e merecedora de proteção integral.
Entre outras questões de suma importância, o ECA visa superar a concepção de menor. A partir de então, esse termo caiu em desuso. Dizer menor para se referir a uma criança ou um adolescente é resgatar toda a carga histórica que essa palavra carrega. A partir do Estatuto, utilizamos criança para sujeitos de 0 a 12 anos incompletos; e adolescentes para sujeitos de 12 anos completos até 18 anos. Brasileiros, sem distinção de raça, cor ou classe social, passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e deveres, considerados como pessoas em desenvolvimento; sujeitos a quem devemos sempre priorizar.
O novo ordenamento jurídico introduziu uma série de inovações na política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente aplicáveis a todas essas crianças e adolescentes e não apenas a uma parcela do segmento infanto-juvenil caracterizada por sua situação socioeconômica – movimento que acabava por estigmatizar os filhos dos trabalhadores e dos excluídos do modo de produção capitalista. A partir do ECA, todos são responsáveis pela formação e proteção desses sujeitos de direitos, não importando a consanguinidade, a religião e a política pública.
É evidente que ainda hoje há distinção entre crianças e adolescentes, inclusive do ponto de vista institucional. Porém, após o breve resgate histórico das fases da política de atendimento no Brasil, queremos ressaltar a importância do ECA como instrumento para exigirmos direitos para as crianças e os adolescentes, pelos quais também somos responsáveis e que outrora eram tratadas como vítimas ou como potenciais criminosos. Agora, do ponto de vista legal, eles são sujeitos em formação, dignos de proteção, cuidados e respeito.
Apesar de toda a luta que resultou no ECA, a realidade nos coloca frente ao desafio de fazer com que ele saia do papel e seja cumprido. Em primeiro lugar, pelo fato de forças conservadoras produzirem discursos deslegitimando os processos de mobilização e construção que garantiram que a lei 8.069/1990 fosse sancionada. Além disso, as alarmantes cifras apresentadas por estudos a respeito do alto índice de mortalidade de adolescentes pobres, negros e periféricos, as sistemáticas denúncias de maus tratos na Fundação CASA, a falta de estrutura dos Conselhos Tutelares e das redes de atendimento à criança e ao adolescente, entre outras dificuldades, são empecilhos para a efetivação dos dispositivos da lei. A luta, embora tenha sido árdua, não acabou.
Paula Rodrigues, São Paulo