A terceirização é um fenômeno típico do estágio monopolista do sistema capitalista de produção, em que o capital alcançou altíssimo grau de concentração nas mãos de grupos econômicos cada vez mais reduzidos. Os monopólios dominam toda a produção fundamental de bens de consumo e necessitam, por vezes, de uma grande variedade de empresas auxiliares ou filiais, prolongamentos da matriz, para desenvolver determinadas funções.
A indústria automobilística, símbolo do “progresso capitalista”, representa bem este perfil. Hoje, as marcas se identificam como montadoras (Ford, Fiat, GM, Volkswagen, Toyota etc.), já que, por exemplo, não fabricam um carro do começo ao fim. Recebem os pneus já prontos de outra indústria, os vidros de uma terceira, o estofado de uma quarta, os itens eletrônicos de uma quinta empresa e assim por diante.
Do ponto de vista da administração capitalista, este é um fator importante para reduzir os custos da matriz, já que a desobriga do controle dos recursos humanos do conjunto dos operários envolvidos no processo de produção. Vale ressaltar também que a fábrica que produz o pneu ou o componente eletrônico geralmente está situada numa região ou país diferente do da montagem, sempre na perspectiva da facilidade de acesso das matérias-primas e da busca por mão de obra barata.
A terceirização brota, portanto, da produção industrial e se reflete em todos os setores da economia. No setor de serviços isto já se encontra plenamente instituído, como também no setor de pesquisa científica e de produção tecnológica.
Neste último, vemos as universidades públicas e os institutos estatais abrirem suas portas e se renderem à “iniciativa privada”. No discurso oficial dos governos isso se chama captação de recursos, modernização, dinamismo, inovação, desburocratização, sempre sob o pretexto de mais investimentos, haja vista o descaso do Estado com o financiamento da educação e o desenvolvimento tecnológico do país.
É cada vez mais forte a influência de empresas capitalistas e “fundações de apoio” nos rumos das pesquisas desenvolvidas por organismos públicos. Empresas de celulares como a Nokia, recentemente comprada pela Microsoft, do bilionário Bill Gates, equipam laboratórios, fornecem bolsas de estudos, pagam passagens e hospedagens a professores e estudantes para participar de cursos e congressos, a fim de que estes desenvolvam novos programas, aplicativos, designs, para serem implantados em seus aparelhos. A patente destas inovações, logicamente, fica com a Nokia, que vai lucrar milhares de vezes mais com a comercialização de seus produtos em relação ao valor inicial que usou para financiar as pesquisas e justificar este tipo de pirataria.
No setor de serviços, os exemplos são inúmeros, tanto entre empresas privadas quanto na administração pública, especialmente em áreas que deveriam ser exclusivas e prioritárias do Estado, como saúde, segurança, abastecimento de água e saneamento. Aqui, toda terceirização é sinônimo de privatização e, em geral, acontece de forma premeditada, a partir da falta de investimentos e do crescente sucateamento de um determinado ente público, a ponto de “justificar” sua entrega a uma empresa capitalista.
O Governo da Paraíba, por exemplo, terceirizou, desde 2011, toda a gestão e a execução de serviços do Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa por meio da “organização social” gaúcha Cruz Vermelha. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, só em 2013 foram mais de R$ 8 milhões desviados no superfaturamento ou fraude em compras, prestação de serviços e pagamento de pessoal, num grande esquema que envolve empresas de fachada e relações familiares.
Para o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho, Eduardo Varandas, “a terceirização da saúde aplicada no Hospital gerou uma série de irregularidades administrativas e trabalhistas que levaram o MPT a pedir a condenação do Estado, da Cruz Vermelha, do secretário de Saúde e da secretária de Administração ao pagamento de R$ 20 milhões, por danos à população”.
Consequências diretas para os trabalhadores
Uma massa imensa de trabalhadores sofre diretamente as consequências da terceirização. Eles ganham menos, trabalham, adoecem e morrem mais e pulam de emprego em emprego, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). A terceirização é, portanto, uma tática dos capitalistas para explorar mais a classe trabalhadora, extrair dela uma maior taxa de mais-valia e, consequentemente, aumentar seus lucros.
Mais de 25% dos contratos com carteira assinada no Brasil (cerca de 13 milhões) são terceirizados. Só no setor de telemarketing e teleatendimento, são estimados 1,5 milhão de trabalhadores, quase todos terceirizados, que prestam serviços a monopólios nacionais e estrangeiros de áreas como telefonia, TV por assinatura e bancos. Estes trabalhadores recebem, em média, salários 27% menores que os contratados diretamente, quase todos no patamar do piso salarial.
No caso do serviço público, esta distância entre os salários é ainda maior. Os diversos governos, ao invés de seguir o que determina a Constituição, contratando servidores efetivos via concurso, empregam milhares de pessoas em todo o país na condição de prestadoras de serviços, precarizando ainda mais o atendimento à população e rebaixando o valor da força de trabalho de diversas categorias profissionais.
A média da jornada de trabalho dos terceirizados ultrapassa as 44 horas semanais, com tempo de permanência no emprego estimado em dois anos e meio, enquanto a jornada dos contratados diretamente é de cerca de 40 horas semanais, com aproximadamente seis anos no mesmo posto de trabalho.
Assim, trabalhadores de uma mesma categoria ou até de uma mesma empresa possuem direitos trabalhistas diferentes. Por tudo isso e pela alta rotatividade nos postos de trabalho, os terceirizados têm também muita dificuldade de se reconhecerem como categoria e de se organizarem politicamente, dificultando a ação dos sindicatos representativos.
Há ainda o fenômeno da “pejotização”, em que o contratante obriga o trabalhador a se constituir como pessoa jurídica, ou seja, como microempresa, e, em vez de assinar sua carteira, pagar um salário determinado e arcar com todos os direitos trabalhistas, faz-lhe um pagamento por serviço prestado, desobrigando-se com o recolhimento do FGTS e do INSS, com o pagamento do 13º salário, da licença-maternidade, da multa rescisória, das férias etc.
Mas o dado mais alarmente diz respeito aos acidentes de trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é o quarto país do mundo em número de acidentes e mortes, com mais de 1,3 milhão e 2,5 mil, por ano, respectivamente. Cerca de 70% dos acidentes acontecem com terceirizados e, entre os acidentes que levam à morte, 80% das vítimas são trabalhadores subcontratados. Setores fundamentais da nossa economia, como construção civil, energia e petróleo, lideram as estatísticas.
Todos esses homens e mulheres incapacitados para o trabalho, mutilados, mortos, são o resultado das extenuantes jornadas de trabalho (sempre prolongadas pelas horas extras), dos salários achatados e da falta de treinamento e de equipamentos de proteção individual.
Trabalho escravo no setor têxtil
Como a ânsia de mais lucros não tem limites para os capitalistas, até trabalho escravo é usado por grandes marcas de roupas e lojas varejistas, por meio de empresas terceirizadas de produção têxtil. Está em curso na Assembleia Legislativa de São Paulo uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga empresas como Marisa, Pernambucanas, C&A, Zara, Collins, Gregory e M.Officer, acusadas de promover tal prática em sua cadeia produtiva.
No caso da espanhola Zara, que possui lojas em mais de 80 países, um de seus executivos já admitiu na CPI saber que a empresa terceirizada Aha (de quem a Zara Brasil compra 90% das roupas que revende) mantinha, em pequenas oficinas subcontratadas, trabalhadores em situação análoga à escravidão.
O Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) também pediu à Justiça o banimento do mercado brasileiro da empresa M5 Indústria e Comércio, detentora de filiais da marca M.Officer em todo o País. Em duas fiscalizações recentes, foram encontrados trabalhadores (na maioria, imigrantes) submetidos a condições desumanas em pequenas oficinas clandestinas, sem qualquer direito trabalhista.
Os locais eram insalubres, com fiação exposta das máquinas, botijões de gás, banheiros coletivos com forte odor de urina, excesso de poeira, iluminação precária, ausência de equipamento de proteção individual e de extintores de incêndio. Além disso, os operários moravam no próprio local e recebiam de R$ 3 a R$ 6 por peça produzida, cumprindo jornadas médias de 14 horas diárias.
PL nº 4.330 visa aprofundar a terceirização
Para aprofundar este cenário de superexploração e desrespeito à legislação trabalhista, os empresários brasileiros estão unidos em torno de um de seus representantes no Congresso Nacional, o deputado federal Sandro Mabel (PMDB-GO), dono da indústria de alimentos Mabel. Para defender os interesses de sua classe, ele propôs o Projeto de Lei nº 4.330, que legaliza a prática das terceirizações em todas as atividades econômicas, de todos os setores, sejam públicos ou privados, seja na atividade-fim ou na atividade-meio.
Atualmente, uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST) proíbe a terceirização da atividade-fim, que é aquela que define, por exemplo, se uma indústria fabrica alimentos ou bicicletas. Mas isto já é largamente desrespeitado hoje. Segundo a resolução do TST, no caso do Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa, exposto no início deste texto, seria legal terceirizar os serviços administrativos, de limpeza, cozinha e segurança (atividades-meio), mas não seria permitido terceirizar o atendimento de saúde (atividade-fim), como os serviços executados por médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas e técnicos de enfermagem.
Muitas lutas já foram desenvolvidas pelas entidades sindicais para combater a terceirização no seio das categorias, como também contra a aprovação do PL nº 4.330.
Contudo, por ser um processo característico da dinâmica capitalista, a terceirização deve ser atacada da maneira mais global possível, avançando para reestatizar antigas empresas públicas privatizadas; para proibir a contratação de prestadores de serviços e realizar concursos; para parar de pagar as dívidas públicas e reverter ao povo todo o montante de recursos que hoje vai para as contas dos especuladores financeiros; para enterrar de vez o PL nº 4.330 e proibir também a terceirização nas atividades-meio; para reduzir a jornada de trabalho e acabar com a farra das horas extras; para assegurar o pagamento do salário mínimo estipulado pelo Dieese; para garantir um fiel cumprimento das normas de segurança no trabalho; para expropriar todas as empresas que mutilam, assassinam ou escravizam operários.
Esta é uma tarefa para o conjunto da classe trabalhadora e que só poderá ser alcançada com uma grande dos trabalhadores e de seus sindicatos, de todos os setores revolucionários e progressistas do País.
Rafael Freire, presidente do Sindicato dos Jornalistas da Paraíba