Nada de esquecer: justiça é punir os torturadores da Ditadura

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“Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”, disse o capitão Bernone de Arruda Albernaz a frei Tito, quando de sua entrada no DOI-Codi. Frei Tito Alencar Lima (v. A Verdade, nº141) ficou mais de um mês sob as garras do famigerado delegado Sérgio Fleury; sobreviveu, mas sua alma ficou profundamente ferida e ele acabou se suicidando. Centenas de prisioneiros políticos morreram sob as torturas mais cruéis no período da Ditadura Militar (1964-1985).

Não tem este artigo o objetivo de descrever esses métodos bestiais utilizados apenas por seres humanos degenerados; tantos, inclusive, que sentiram na própria pele e no espírito os seus efeitos, já o fizeram. O seu fim é refletir sobre a seguinte questão: merecem anistia tanto os que pegaram em armas, expropriaram bens, sequestraram e mataram no combate à ditadura quanto os agentes do Estado que torturaram sadicamente para obter confissões?

Os guerrilheiros nunca torturaram alguém. Atingiram em combate, eventualmente, alguma pessoa que nada tinha a ver com o regime ditatorial que imperava no País. Compare isso com a montagem de uma estrutura profissional, equipada de agentes recrutados no próprio meio militar ou entre policiais civis integrantes de esquadrões da morte: os Dops e DOI-Codi. Nessas casas da morte, os agentes não podem ser classificados de valentes, e sim de modelos de covardia, ao bater, dar choques elétricos, humilhar, empalar homens e mulheres de mãos atadas, sem nenhuma chance de defesa.

Por isso, a tortura é classificada como crime hediondo e imprescritível pelos órgãos internacionais de direitos humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o Brasil descumpriu a Convenção Americana de Direitos Humanos em duas ocasiões: por não processar e julgar os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na Guerrilha do Araguaia, e quando o Supremo Tribunal Federal interpretou a lei de anistia de 1979 considerando que a legislação apagou os crimes de tortura e assassinato de militantes por parte de agentes do Estado brasileiro.

Tais crimes hediondos ocorreram nas dependências do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, já devidamente identificadas, assim como muitos dos torturadores. O tenente-coronel Paulo Malhães falou à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e foi explícito. Confessou que torturou e matou tantos quanto foi necessário, na Casa da Morte, em Petrópolis, e informou como procedia para que os cadáveres não fossem identificados: “Naquela época, não existia [exame de] DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais as partes que podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Então você quebrava os dentes. As mãos, cortava daqui para cima”. Poucos dias depois do depoimento, foi assassinado, dentro de sua casa, num assalto mal explicado (não teria sido queima de arquivo?).

A Lei da Anistia – nº 6.683/79 – foi promulgada ainda no regime militar, no governo do ditador João Baptista Figueiredo, e concedia “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos”. É com base no termo “conexos com estes”, que o STF conclui que não cabe punição às torturas e assassinatos praticados nas dependências das Forças Armadas, pois estariam anistiados em conformidade com a lei, visto que seriam crimes conexos com os crimes políticos.

A Constituição Federal de 1988 diz em seu artigo 5º, inciso XLIII: “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins…..”. A norma constitucional não se aplicaria, entretanto, aos crimes praticados pela ditadura, pois de acordo com o princípio do direito, a lei não retroage, a não ser para beneficiar o réu.

Depois de muita mobilização dos familiares de “desaparecidos” durante a ditadura, entidades de direitos humanos, organizações de esquerda e a Igreja, especialmente a Arquidiocese de São Paulo, com a publicação Tortura, nunca mais, houve muitos avanços em nosso país quanto à responsabilização do Estado brasileiro, mas insuficientes, haja vista a não abertura total dos arquivos da repressão e a não punição dos responsáveis e executores.

Em 1995, o governo brasileiro promulgou a Lei nº 9.140, assegurando reparação moral às vítimas da ditadura militar no País por meio de indenização às suas famílias. Essa lei estabeleceu ainda a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com o objetivo de promover o reconhecimento do Estado mediante a responsabilidade pelos crimes cometidos durante o período da repressão política. Nos 11 anos de atuação (1996-2007), a CEMDP recebeu processos referentes a 475 vítimas. Desse total, 136 nomes já constavam no Anexo I da Lei nº 9.140/95. Os outros 339 casos foram objeto de análise da Comissão. Desse número, 221 casos foram deferidos e as famílias foram indenizadas, e 118 casos foram indeferidos. A lei teve caráter restrito, pois não permitiu a localização dos restos mortais dos desaparecidos e não garantiu punição aos que praticaram os crimes. A indenização das famílias foi concretizada pela Lei nº 10.559/2002.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela Lei nº 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. O mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela Medida Provisória nº 632.

Além da Comissão Nacional, foram criadas Comissões da Verdade nos Estados. A atuação dessas comissões tem trazido fatos à tona, confirmado outros sobre os quais se tinha informações ou evidências, como é o caso do assassinato e sumiço do cadáver do deputado Rubens Paiva, entre tantos.

Fruto de toda essa luta, algumas ossadas enterradas clandestinamente foram localizadas e as vítimas puderam ser sepultadas por seus familiares e admiradores com as honras merecidas, heróis que foram – a exemplo de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos.

Entretanto, ainda há muito a lamentar e por fazer. A lamentar, a destruição de aproximadamente 19,4 mil documentos secretos produzidos ao longo da ditadura militar (1964-1985) pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). A destruição foi determinada pela chefia do SNI no segundo semestre de 1981 (no governo do ditador João Figueiredo).

As Forças Armadas, por sinal, não reconhecem oficialmente a prática de tortura nas suas dependências, com autorização ou conhecimento dos seus comandantes, apesar de todos os testemunhos, evidências e provas materiais já apresentados. Isso é grave, pois o reconhecimento e a autocrítica seriam sinais de desaprovação e compromisso público de não repetir essa prática abominável. A negativa ou o silêncio deixam aberta a possibilidade de repetição.

Os crimes, por sua vez, não podem ficar impunes; por isso, a luta continua, reforçada pelo posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Afirma a Corte: “São inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

Esquecer, jamais. Punir os culpados, para que nunca mais se repitam as violações dos direitos fundamentais e elementares da pessoa humana, é tarefa não apenas dos revolucionários, mas de todas as pessoas de bem!

José Levino, historiador