Ivan Maurício tem 63 anos de idade e 47 de jornalismo. Atualmente é responsável pelo portal O Nordeste, que em 2011 recebeu do Ministério da Cultura o Prêmio Patativa do Assaré por sua divulgação da Literatura de Cordel, poetas, violeiros e xilogravuristas.
Sua vida profissional teve início aos 17 anos no Diário da Noite (um jornal da empresa Jornal do Commercio na época), que possuía um estilo popular e abordava questões relativas ao sindicalismo e à vida da cidade. Passou pelo Jornal dos Bairros (mantido pelos movimentos comunitários), Jornal da Cidade, foi correspondente do jornal Opinião (um órgão de resistência à ditadura militar) em 1972; trabalhou no jornal Movimento; no Verso (jornal da imprensa alternativa); no Extra e no Mais Um, que substituiu o Extra depois que ele foi apreendido pelo Exército.
No seu currículo traz ainda experiências em grandes empresas de comunicação como o Jornal do Commercio, Diario de Pernambuco, revista Manchete, O Globo e Vanguarda, de Caruaru. Também esteve ligado a emissoras de rádio, em trabalhos voltados para a defesa de causas populares, e, na televisão, foi diretor da TV Pernambuco.
Ivan faz questão de registrar que desde os 18 anos é filiado ao Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco e que até hoje permanece entre os associados da entidade. E conclui, nesta entrevista que concedeu a A Verdade: “A imprensa praticamente faz parte da minha vida”.
A Verdade – Qual a importância da imprensa para a humanidade?
Ivan Maurício – O domínio da comunicação, da informação, é uma luta permanente da sociedade, do ser humano. Então, não é à toa que esses fatos que a gente está presenciando agora na França [referência ao episódio trágico do jornal humorístico parisiense Charlie Hebdo] envolvem os meios de comunicação. Há uma batalha na difusão da informação que tem um conteúdo político muito forte. Pra você ter uma ideia, antes da tipografia os livros eram manuscritos e eles eram guardados, por exemplo, nos conventos religiosos e a alguns privilegiados era dado o direito de ler. A Bíblia não era lida por todos.
A imprensa surgiu com Gutenberg, que era um simpatizante do protestantismo, e ele, junto com o difusor do protestantismo, Calvino, conseguiu fazer com que a Bíblia rompesse esse ciclo de ser um livro manuscrito de propriedade de alguns conventos e passasse a ser um dos livros mais divulgados e conhecidos do mundo. Então, a partir da tipografia, os fundamentos filosóficos, religiosos e políticos passaram a ser difundidos com muito mais intensidade. Não é à toa que o Alcorão, os grandes livros, O Capital, de Marx, todos esses livros marcaram a concepção filosófica e só puderam ser difundidos por causa da existência da tipografia. Se a gente voltar ao passado, vai ver que a tipografia teve um impacto muito mais forte do que tem a internet hoje.
Aí veio uma contrarreação tremenda. Queimaram-se livros – e ainda se queimam, até hoje, mas naquela época se queimavam em praça pública para que não houvesse a difusão do saber, do conhecimento. Eu costumo dizer que na difusão de ideias todas as plataformas são importantes, do panfleto ao carro de som, ao rádio, à televisão, ao jornal, à internet. O que está em jogo é a discussão do conteúdo e, por trás do conteúdo, estão a ideologia, as práticas políticas, as crenças religiosas e todas as formas de difusão do saber humano. A humanidade parte de um princípio de que quem tem informação tem poder. Então a luta pela informação é importantíssima na luta pelo poder. E difundir a informação, torná-la o mais compreensível possível para todos os segmentos da sociedade, é o grande desafio de quem faz política. Não adianta você ter boas ideias, ter muita leitura, muito conhecimento, se você não conseguir transmitir isso a outras pessoas, e o segredo da transmissão está justamente em usar bem as plataformas de comunicação que existem hoje.
Qual a atual situação dos meios de comunicação?
Houve, na área da luta política, uma perda muito grande da transmissão da informação. Os sindicatos perderam os seus jornais operários, pois, a partir de São Paulo, com a grande contribuição que os anarquistas deram ao movimento sindical, foram montadas estruturas de comunicação, de escrever, de publicar jornais, de montar arquivos nos sindicatos; os sindicatos tinham grupos teatrais, tinham grupos culturais. Isso tudo foi uma grande perda que nós tivemos. Hoje, a imprensa sindical no Brasil é muito pobre. Essa perda também aconteceu com as chamadas formas alternativas de comunicação.
Você tem aí os grandes veículos estabelecidos que pertencem a famílias poderosas. São sete famílias que dominam a mídia no Brasil: a família Marinho, que tem O Globo, já entrando agora na área da internet, com o G1; a família dos Mesquitas, que tem O Estado de S. Paulo; a dos Frias, que tem a Folha de S.Paulo; lá no Rio Grande do Sul, a dos Sirotsky, que é a da Zero Hora… Você conta nos dedos sete ou oito famílias. A Abril, que já está virando de novo um grupo multinacional, mas que era da família Civita (ainda é uma parte, mas bem menor); hoje já entraram lá uns estrangeiros, espanhóis principalmente. Se você olhar uma banca de revista, verá que ela pertence a essas famílias; 90% do que tem numa banca é de um grupo só; então, é um domínio muito grande.
E a imprensa alternativa, que durante o enfrentamento com a ditadura cumpriu um papel muito importante, perdeu continuidade, embora ainda hoje existam algumas experiências. Temos a Caros Amigos, o jornal A Verdade, que vocês fazem – e que acho que é importantíssimo nesse aspecto –, há algumas outras publicações espalhadas pelo Brasil. Mas é muito pouco diante do potencial que este país tem.
Por que é importante o nível desse tipo de imprensa? Porque ela vê a sociedade por outro olhar, sem o interesse dos grupos dominantes, sem o interesse do jogo do poder, que é o que a grande imprensa faz. Neste momento em que vivemos, se quisermos fortalecer a democracia, conquistar mais espaço para os trabalhadores, para a sociedade, para as pessoas, para os que têm menos poder na sociedade terem mais poder, a gente tem que multiplicar a informação, principalmente sob o aspecto educativo, formativo, de concepção de ideias. Acho fundamental você ter jornais de conteúdo, jornais doutrinários, jornais que tenham um lado, que tenham uma posição formada sobre os principais temas na sociedade. Tá faltando isso no Brasil, hoje. O problema não é plataforma, o problema é o conteúdo. Esse é o grande desafio: produzir conteúdo de qualidade, que gere reflexão e aprendizado.
Qual a sua opinião sobre um suposto conflito entre as diferentes plataformas de comunicação como internet x jornal impresso, por exemplo?
Isso é uma bobagem tremenda, você pensar que uma plataforma elimina a outra. Disseram isso quando o cinema surgiu, disseram que o rádio ia se acabar, que o cinema era mais completo, que além da voz tinha uma imagem e tal. Aí, quando a televisão foi surgindo, disseram que o cinema não ia sobreviver. E o que a gente vê é que a mais velha das plataformas de massa, o rádio, hoje está vivendo um grande momento, se recuperando tremendamente, porque é uma atividade que você, enquanto está trabalhando, você pode estar ouvindo. Enquanto você trabalha não pode ver televisão, senão perde a atenção. Então, o rádio é hoje um mecanismo de comunicação, uma plataforma muito forte, e cada vez vai ser mais forte.
A imprensa escrita vive uma crise nas grandes corporações porque esse tipo de jornalismo universalizado que tenta acompanhar todos os fatos está perdendo na velocidade; não é que a plataforma seja ruim, o problema é a velocidade das informações. Hoje é mais fácil ter acesso à informação pelo rádio, pela televisão e pela internet do que pelo jornal em si. Então, o jornal também ganhou, nas grandes corporações, uma logística muito complexa. Para se ter uma ideia, o Jornal do Brasil, um dos grandes jornais do país, deixou de circular em papel e hoje só está na internet porque a questão da mobilidade, a questão da indústria do jornal estava custando, para cada assinante, R$ 5, quando o preço de capa era de R$ 2,50; assim, quanto mais assinaturas eles vendiam, pior. Então para eles chegou a hora de parar.
Se houver uma reunião, durante a madrugada, para se tomar uma decisão política muito importante para o país, pode ter certeza de que os sites, os blogs, estarão todos acompanhando com foto, com imagem. Aí se criou uma mistificação: “Como a internet é mais rápida, ela vai destruir o jornal”. Não. Esse modelo de jornal é que está acabando. O jornal como instrumento de reflexão ou como coleta de informações de leitura aprofundada, esse é insubstituível. Assim como a plataforma livre – seja ela e-book ou seja ela papel, livro –, porque a humanidade não vai conseguir desvencilhar-se dela, porque todo mundo se forma, se prepara através do livro, da leitura aprofundada.
Os jornais brasileiros estão padecendo também de superficialismo: não trazem nada aprofundado. Houve o resultado da eleição para presidente da República e ninguém se aprofundou. Na avaliação absolutamente primária, Dilma ganhou no Nordeste por causa do Bolsa Família; ora, se você for estudar a realidade do Nordeste, verá que o Bolsa Família atinge 55% das famílias no Nordeste; como é que se explica que ela teve 80, 85% dos votos? Não foi só isso. Quer dizer, também foi o Bolsa Família, mas não só foi isso.
A gente está precisando, talvez, de uma imprensa que aprofunde mais as coisas. Estou dando isso apenas como exemplo, mas há n assuntos no país que precisam ser mais bem compreendidos: a natureza do nosso solo, a questão do semiárido, a questão de como é que este país se mantém numa unidade linguística com essa dimensão territorial – quando existe um país como a Espanha, um pouco maior do que Sergipe e Pernambuco juntos mas que tem lá dentro quatro, cinco, seis dialetos. Isso tudo são questões que a gente precisa aprofundar, estudar para poder entender melhor a sociedade e também para uma melhor defesa das ideias. Para que elas se tornem claras, é preciso que haja plataformas aprofundadas.
Então, eu acho que o jornal ainda é uma plataforma importante, como o livro também, e que devemos usá-las todas. A internet também é muito importante. Tudo isso é importante. Agora, cada uma dentro de seus limites, de suas possibilidades.
Ao mesmo tempo que a internet permitiu uma liberdade muito grande, os servidores que guardam toda sua memória pertencem quase a um país só, que são os Estados Unidos. Toda a informação que é veiculada no Brasil, que é armazenada no Brasil, está hospedada nos EUA. O e-mail da presidenta da República foi devassado, como o meu, o seu, o de qualquer um pode ser devassado na hora que os EUA quiserem; os servidores estão todos lá, os grandes contêineres onde estão as informações. Você está sendo devassado toda a hora. Esse Google Maps é outra ameaça à autonomia do ser humano, porque ele tem um grau de aproximação de até oito metros; ele permite flagrar você até dentro da sua casa, sem autorização prévia, e hoje isso é permitido. Não é disponibilizado para todo mundo; eles disponibilizam uma altura de 300 metros, mas os serviços de segurança dos EUA dispõem desses dados todinhos a oito metros. Não é à toa que essas grandes corporações da internet são autorizadas pelo governo norte-americano, porque elas são instrumentos de espionagem, sabem tudo em poucos segundos. Elas podem tirar todo o seu perfil, saber se você tem alguma pendência judicial, e ir no seu e-mail ver se você tem alguma briga com a sua mulher ou ex-mulher, se tem qualquer coisa que você esteja tratando do ponto de vista da sua militância política. Isso tudo é devassado.
Desse modo, a internet, ao mesmo tempo que é um ganho, é uma plataforma mais barata de você multiplicar uma ideia, e essa ideia está sendo toda controlada por um poder muito grande. Talvez a grande disputa deste século não seja a luta pelo território e sim pela posse do controle da informação.
Que contribuições você destaca em relação à sua experiência nos jornais alternativos? O que você considera mais importante?
Para mim foi fundamental! Para minha vida é um compromisso que eu tenho: onde houver uma iniciativa, eu estarei presente, disposto a colaborar. Foi uma opção. Por conta disso, eu enfrentei 10 ou 15 anos de muita perseguição. Fui demitido dos meus empregos formais que me mantinham. Eu trabalhei na revista Manchete e fui demitido por pressão da Polícia Federal.
Mas pra mim foi o maior aprendizado que já tive. Primeiro porque você só tem o real conhecimento do nosso país quando vai a fundo na realidade em que vive o povo. Então isso pra mim foi um aprendizado muito grande. É importante saber como vive o povo e como o povo está encontrando soluções para resistir a essa situação em que a gente vive há séculos de dominação.
É importantíssimo também ver a fragilidade, por falta de informação, a que o povo vive submetido. Não é à toa que, se você colocar hoje uma reflexão sobre a realidade do país e uma notícia sobre Xuxa, a notícia de Xuxa vai despertar muito mais interesse, porque a gente vive o processo de sonegação de informação ao povo brasileiro. Então, o povo brasileiro precisa ter informação de como ele vive, de como ele está encontrando soluções, de quais são as ideologias e os interesses que estão por trás de tantas medidas aparentemente simples.
Você vê decisões econômicas e políticas e sociais sobre as quais as pessoas não fazem correlações. Veja a situação da Petrobras, que passa por um momento de perigo. Ela tem uma perda grande, uma empresa que foi fruto da luta dos brasileiros. Brasileiros que perderam vidas… a luta do O petróleo é nosso, da década de 1950, de que participaram tantos brasileiros… não se pode ter uma empresa dessas fugindo do controle dos seus donos, que são os trabalhadores brasileiros. E o governo brasileiro chamou os operários brasileiros para que trocassem o seu Fundo de Garantia por ações da Petrobras, e essas ações hoje valem 65% do valor pelo qual eles compraram!
É uma perda de patrimônio, e a população ainda não entendeu a profundidade disso. Este é o papel da imprensa popular: ir lá na ponta da sociedade e esclarecer, para que as pessoas ganhem consciência e, ganhando consciência, procurem a liberdade, os melhores dias para seus filhos. Então esse é um desafio da imprensa popular, e eu fico muito preocupado e angustiado até quando a gente vê definharem as experiências dessa imprensa popular. E nós poderíamos ter –temos uma estrutura sindical com recursos para formar – nós poderíamos estar formando profissionais nessa área, fazendo cursos. Acho que tem gente disposta a transmitir. Eu sou apenas um dos que têm participado desse processo, mas tem muita gente que pode ajudar, que pode dar palestras, que pode transmitir conhecimento, que pode formar profissionais. Penso que hoje há um grande desafio para o movimento sindical, o movimento popular, os movimentos comunitários: voltar a formar profissionais na área de comunicação, nas rádios comunitárias, em jornais populares, na publicação de livros, lançar editoras. Existe possibilidade disso, e acho que não se justifica essa apatia que está havendo na área da imprensa popular no Brasil.
Confirmando o papel que a imprensa popular pode cumprir, existe uma importante contribuição, que foi no enfrentamento à ditadura militar. Você teve uma experiência também nesse sentido. Fale sobre o papel da imprensa na luta contra a ditadura militar.
Praticamente por duas décadas trabalhei na imprensa alternativa no período de resistência ao regime militar. E foi fundamental mesmo, porque na grande imprensa, além de haver a censura, havia também um interesse dos patrões dos jornais. Eles tinham o limite da oposição deles, a oposição deles era mais liberal e eles não queriam ter problemas com a sobrevivência dos seus veículos. Na hora que o governo os contemplava com propaganda, eles amenizavam; ou, no caso daqueles que foram um pouquinho mais críticos, o governo foi lá, apertou e conseguiu.
O Brasil não tinha como veicular ideias de oposição e, naquele momento, a imprensa alternativa foi fundamental para consubstanciar as teses das lutas pela Constituinte, pelo fim da censura, pelo regime democrático. Essas bandeiras levantadas em defesa da autonomia nacional foram temas centrais desse trabalho da imprensa alternativa. Tinha aí jornais como Opinião, Movimento, Hora do Povo… tantos e tantos jornais… O Pasquim… Foram muitos que se multiplicaram no Brasil inteiro… jornais partidários que havia também.
Todos esses deram uma grande contribuição à difusão dessas bandeiras porque – para que se tenha uma ideia – até a chegada dos grandes momentos da luta pelas eleições diretas, a grande imprensa não tocava nesse assunto. Só quem falava eram esses jornais, os jornais alternativos.
Eu me recordo de um momento, já no final da luta pela conquista das eleições diretas, quando já havia quase um milhão de pessoas nas ruas, quando um carro da Rede Globo quase era apedrejado pela população, porque eles iam cobrir e não davam uma só notícia. Foi aí então que a grande imprensa entrou, com a folha de capa amarela, dizendo que estava lutando pelas diretas. Mas porque essa luta veio de baixo, do povo, ela já estava inevitável: um milhão de pessoas nas ruas, e eles não podiam ficar alheios a uma realidade dessas, né?
Isso foi conquistado com a mobilização, com panfletos, com jornais populares, com a imprensa, carro de som. Não tinha a grande mídia, não tinha televisão, não tinha rádio nessa mobilização. Esse papel da imprensa precisa ser resgatado hoje para outras causas e outras bandeiras; eu acho que a gente está vivendo, no momento, numa encruzilhada, onde é fundamental o papel da imprensa popular. Penso que é preciso a gente fazer um alerta para que as entidades comecem a pensar nisso, porque esse modelo democrático aí não permite ao trabalhador brasileiro ter espaço.
Que mensagem gostaria de deixar para os leitores de A Verdade?
Tenho uma simpatia grande por jornais como A Verdade. São poucos os jornais partidários, que defendem teses. Não me interessa se eu concordo com todas elas ou discordo de algumas, mas é fundamental que eles existam e é fundamental que elas sejam expostas – como o jornal A Verdade faz, de forma muito extensa, bem descrita, para que as pessoas compreendam os fatos e preservem também a história daqueles que lutaram pela causa democrática do país. Esse trabalho que A Verdade faz tem todo o meu respeito justamente pela profundidade. Busca, procura e tem todo o meu respeito e merece toda a minha sensibilidade de entender que ele está contribuindo para que o povo brasileiro avance, ganhe consciência para poder ganhar a liberdade.
Ludmila Outtes e Thiago Santos, Recife