Lourival Batista: um certo Louro do Pajeú

2927

download“O Pajeú é o rio que não passa”.  Foi assim que Dedé Monteiro, um dos grandes poetas da região, definiu o Rio Pajeú, fonte de água e de poesia que dá nome a um sertão no norte de Pernambuco. Para Dedé, o Pajeú é um rio que não passa por dois motivos: primeiro porque fica seco durante o verão de estiagem, afetando a vida dos sertanejos, mas também porque segue vivo na riqueza cultural de quem se criou na região.

São José do Egito, Itapetim, Tabira e Afogados da Ingazeira são algumas das cidades que bebem das águas do Pajeú. Certamente há alguma mágica nas águas desse rio, ou alguma ciença – como diria o matuto – que fez nascer nessa região poetas, cantadores e repentistas da grandeza de Biu de Crisanto, Zé de Cazuza, Rogaciano Leite, Manoel Filó, João Batista de Siqueira (Cancão), Antônio Marinho, Jó Patriota, Zé Marcolino, Dedé Monteiro, os irmãos Dimas Batista e Otacílio Batista – e o terceiro irmão, Lourival Batista, que em 2015 tem seu centenário.

São poetas e cantadores tão enormes quanto desconhecidos da grande mídia no cenário nacional. Talvez por terem composto e cantado as coisas do Nordeste, região marginal em relação ao Sul rico e industrial. Mas um poeta sabe reconhecer a arte, e foi Manuel Bandeira quem disse estes versos, destacando a grandeza dos cantadores:

“…Saí dali convencido / Que não sou poeta não; / Que poeta é quem inventa / Em boa improvisação / Como faz Dimas Batista / E Otacílio seu irmão; / Como faz qualquer violeiro,/
Bom cantador do Sertão, / A todos os quais humilde / Mando minha saudação.”
(BANDEIRA, Manuel, Estrela da Tarde, Editora Global).

Muitas atividades celebram este ano o centenário de um dos maiores poetas da região. Nascido em 6 de janeiro de 1915 na cidade de Itapetim, Lourival Batista Patriota ganhou fama muito cedo como Rei do Trocadilho e Louro do Pajeú. Lourival, certamente, levou a arte de versar improvisado a um patamar superior.

De uma família de trabalhadores rurais, foi com sua mãe, Severina Batista Patriota, que Lourival aprendeu o gosto pela poesia. Por ser o filho mais velho, teve o privilégio de estudar no Recife e, em 1933, aos 18 anos, terminou o curso ginasial. De volta para o Pajeú, logo fez fama como bom cantador pela capacidade de fazer trocadilhos e improvisar em alto estilo.

Lourival casou-se com Helena Marinho, filha do repentista lendário Antônio Marinho e tabeliã do cartório de São José do Egito. Helena criou os oito filhos de Lourival, dando à família a estabilidade que a vida de boemia e de cantorias em outras cidades retirava. Por Helena, Lourival disse:

“De fato devo ter pena / Meu amável companheiro / De minha querida Helena / Que é meu amor verdadeiro / Mas quando vou com a pena / Ela já vem com o tinteiro”.

E sobre a família:

“Eu me casei com Helena / Filha de um colega teu; / E uma oitava de filhos /  Lá em casa apareceu / São dez, noves fora, um / Quem anda fora sou eu.”

Seu maior parceiro de cantoria foi um grande poeta paraibano, Pinto do Monteiro. As pelejas desses dois cantadores se tornaram verdadeiras antologias e patrimônios da cultura nordestina. Por mais de 30 anos, Pinto do Monteiro e Lourival percorriam os sítios no interior, cantando sempre de improviso e com rima metrificada, na sacada das casas a convite de um fazendeiro ou no coreto da praça local. A cantoria se pagava com as doações dos que assistiam depositando dinheiro e moedas em uma bandeja.

Certa feita, cantando com Pinto em “oito pés de quadrão’, Lourival lançou:

“Cantar comigo é um risco / quebra pedra, espalha cisco; / vem trovão, e vem corisco; / vem corisco e vem trovão; / desce água em borbotão; / as águas formando tromba / teu açude, agora, arromba / nos oito pés de quadrão!”

A resposta de Pinto foi na mesma moeda:

“Meu açude não arromba / nem a sua parede tomba /  porque dois pés de pitomba / sustentam seu paredão / Haja pitomba no chão, / n’água rasa e n’água funda; / leve pitomba na bunda / nos oito pés de quadrão!

Simplicidade e compromisso com os pobres

Lourival carregava consigo o gosto pela simplicidade da vida, o desapego ao dinheiro e às coisas materiais. Era conhecido em São José do Egito por doar comida e dinheiro aos pobres,  e os mendigos e loucos da cidade frequentemente almoçavam em sua casa.

Cantando sobre a pobreza e o valor do cantador, Louro mostrou por que ganhou o título de Rei do Trocadilho:

“É muito triste ser pobre; / para mim é um mal perene…/ trocando o ‘p’ pelo ‘n’, / é muito alegre ser nobre;/ sendo ‘c’, é cobre / cobre, figurado, é ouro / botando o ‘t’, fica touro / como a carne e vendo a pele / o ‘t’, sem o traço, é ‘l’ / termino só sendo Louro!”

Em 1960, Lourival canta no comício para eleição de Pedro Gondim para governador da Paraíba. Era o momento em que o golpe militar já se preparava e o slogan da campanha combatia o medo. Lourival disse:

Brancas rosas, verdes ramos / levei-os bem na lembrança; / rosas brancas de virtude; / ramos verdes de esperança…/ sem esperança e virtude / político nenhum avança”.

Era no humor, no entanto, que a criatividade de Lourival se destacava. Tinha um senso de humor aguçado, capaz de captar qualquer deslize e deixar seus oponentes sem reação. Enfrentando João Andorinha, este fez alusão ao romance de João Martins de Ataíde, O Dragão do Rio Negro, e disse: “…Sou igualmente ao Dragão / do Rio Negro, falado…”

Lourival respondeu sem pena:

Para Dragão, estás errado, / pois Lourival já te explica: / tira letra, apaga letra, / bota letra e metrifica: / tira o ‘d’, apaga o ‘r’ / bota o ‘c’, vê como fica…”

A partir do início da década de 1970, tiveram início os congressos de cantadores que representaram uma nova fase na atividade. Nos teatros das capitais e maiores cidades do Nordeste, os repentistas se reuniam para desafios. Notórios juízes de rima eram designados e, por fim, um ganhador escolhido.

Nesse período, vários cantadores gravaram discos e levaram seu trabalho ao Rio de Janeiro e São Paulo. Lourival Batista, no entanto, continuou no Pajeú, preferindo as cantorias aos congressos, a rede mansa aos estúdios de gravação.

Todos os dias seis de janeiro, quando se comemoravam as festas de Reis no sertão, o aniversário de Lourival também era comemorado com a presença de muitos cantadores que vinham das cidades mais distantes para prestigiá-lo. O dia seis se tornou, assim, um dia de lembrar a poesia de Louro e de saudar os poetas da região, relembrando a grandeza do Pajeú, berço imortal da poesia. Mesmo não gravando vários discos, Lourival permanecia como referência para os poetas.

Palhaço que ri e chora

Com profundidade, Lourival descreveu nestas décimas os prazeres e desgostos da atividade, não apenas do palhaço, mas de todo artista:

 

Pinta o rosto, arruma palma
dentre os néscios e sábios
o riso aflora-lhe os lábios
a dor tortura-lhe a alma.
Suporta com toda calma
Desgosto a qualquer hora;
ama sim, mas vai embora
vive num eterno drama:
Pensa, sonha, sofre e ama
Palhaço que ri e chora.

Tem horas de desespero
quando a vida desagrada
sentindo a alma picada
tem que ir ao picadeiro.
Se ama esquece ligeiro
porque ali não demora
chagas dentro, rosas fora
guarda espinho, mostra flor
misto de alegria e dor
palhaço que ri e chora.

Se quer alguém com desvelo
deixar é martírio enorme
se vai deitar-se não dorme
se dorme tem pesadelo.
Sentindo um bloco de gelo
lhe esfriando dentro e fora
desperta, medita e chora.
Sente a fortuna distante
julga-se um judeu errante
palhaço que ri e chora.

Palhaço, tem paciência!
Da planície ao pináculo
o mundo é um espetáculo
todos nós uma assistência.
Por falta de consciência
gargalhamos sem demora
choramos a qualquer hora
sem força, coragem e fé
porque todo homem é
palhaço que ri e chora.

O centenário do Louro

Na casa onde morou Lourival Batista é mantida por seus filhos e netos a Casa do Repente – Instituto Lourival Batista, que recupera a história de Lourival e dos poetas da região. Lá ocorreu a comemoração do seu centenário, com cinco dias de festa, poesias e cantorias.

Em 5 de dezembro de 1992, aos 77 anos, Lourival faleceu. Viveu sempre da cantoria e do repente, exceto por um pequeno período como anotador do jogo do bicho.

Conhecer a história dos repentistas é entender a formação cultural do Brasil, o pensamento do trabalhador do campo no final do século XIX e durante quase todo o século XX, a relação com a natureza, com a religião, com o Estado, com o trabalho e a família. O centenário de Louro do Pajeú é uma parte grande dessa história.

Fonte: Antologia Ilustrada dos Cantadores (Francisco Linhares e Otacílio Batista, Editora Universitária da UFPB, 3ª ed.).

Sandino Patriota, São Paulo