Em 1973, um casal de brasileiros exilados pelo regime militar encontrava-se na cidade de Genebra, Suíça, à procura de câmeras fotográficas para que a moça pudesse tirar fotos de prédios requeridos em seu curso de Arquitetura. De volta à França, onde estavam morando, foi o rapaz quem se sentiu mais feliz por ter o equipamento em mãos. O nome do casal é Lélia e Sebastião Salgado, que se tornou um dos maiores fotógrafos da história do fotojornalismo. Autor de trabalhos como Serra Pelada, Trabalhadores, Êxodos, Outras Américas e Terra, Sebastião é conhecido por realizar um trabalho de denúncia à exploração, opressão e destruição que se passa no mundo, fruto do sistema capitalista, e por retratar a ideia do que seria um mundo novo, marcado pela simplicidade e pela humanidade coletiva.
Trajetória Política
Natural da cidade de Aimorés, interior de Minas Gerais, Salgado teve uma infância marcada pelo contato com as maravilhas naturais. “A fazenda do meu pai era grande e autossuficiente. Às vezes, a estação chuvosa provocava deslizamentos de terras e ficávamos isolados por um mês, mas éramos autossuficientes, não nos faltava nada. Lá viviam cerca de 30 famílias e ninguém era rico nem pobre”.
Aos 15 anos, mudou-se para Vitória, Espírito Santo. Foi aí que conheceu as contradições de uma sociedade marcada pela divisão em classes: “Vimos o surgimento das desigualdades sociais: até aquele momento, eu não tinha consciência delas, pois eu vinha de um mundo que não havia ricos nem pobres, e com o sistema industrial, a gente do campo descobriu nas cidades uma vida completamente diferente, a maioria caiu na pobreza”.
Assim, sua consciência de classe e de outros de seus amigos tive um despertar: “Comecei a ter muitos amigos militantes nos partidos de esquerda (…), alguns de nós militavam em associações como a Juventude Operária Católica. Dessas instituições cristãs de esquerda nasceram partidos muito mais radicais, como a Ação Popular, à qual aderi. Esse grupo tinha ideias cubanas e estava disposto a iniciar a luta armada”. Então ele começou a ver que o aprofundamento da luta de classes chegara ao nível máximo com a ditadura fascista. “Houve na população um enorme movimento de contestação contra essa ditadura e contra todas as violações que ela cometeu (…). O sentimento de revolta foi tal que nosso engajamento, o de Lélia e o meu, se radicalizou ainda mais. Participamos de todas as manifestações e de todas as ações de resistência à ditadura e estávamos, ao lado de nossos camaradas, ferozmente determinados a defender nossas ideias”.
Com o aumento da perseguição e das torturas, foi necessário que a Ação Popular adotasse novas táticas para preservar seus militantes. “Nosso grupo decidiu que os mais jovens, dos quais fazíamos parte, deviam ir para o exterior, para se formar e continuar agindo de lá, enquanto os que tivessem mais maturidade entrariam na clandestinidade”. Os dois acabaram viajando à Europa.
Retratista e denunciador
Após viajar para a França, Sebastião Salgado se distanciou das organizações políticas revolucionárias brasileiras, porém, não deixou de dedicar sua vida e seu trabalho às causas populares. “Quando me perguntam por que eu cheguei à fotografia social, eu respondo: foi como um prolongamento do meu engajamento político e de minhas origens (…). Lélia e eu constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado, a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro, a privação de tudo para aqueles que não têm nada. E foi esse mundo privado de tudo que eu decidi retratar, por meio de minhas fotografias”.
Dentre os lugares fotografados por Salgado, um dos principais foi Ruanda, na África. Sua primeira viagem a Ruanda foi em 1971, quando trabalhava na Organização Mundial do Café. Depois de terminada sua missão de trabalho, voltou lá duas vezes: na primeira, realizou várias reportagens fotográficas, que depois ajudaram na formação do álbum de fotos África, lançado em 2007. Já na segunda vez, em 1992, presenciou um dos conflitos mais sanguinários do século passado. “Quando desembarquei em Benako, no nordeste da Tanzânia, 100 mil refugiados (de Ruanda) já estavam lá, em poucos dias, eles eram um milhão (…). Em meio àquele desastre, vi coisas terríveis, algumas, inesquecíveis. Perto do Kagera, rio que separa Tanzânia e Ruanda, vi dezenas e dezenas de cadáveres passando por debaixo de uma pequena ponte. Havia uma queda d’água de onde caíam corpos sem parar e que depois entravam num turbilhão. Era horrível”.
No total, esta guerra que ocorreu entre as tribos tutsis e os hutus, estes últimos apoiados e financiados pelo imperialismo francês, rendeu em torno de 800 mil mortos. Alguns desses relatos foram também para o livro África, que, muito mais que simplesmente mostrar um conflito, denunciava a sua superestrutura socioeconômica. “A guerra havia ocorrido por pretextos étnicos. Mas, para além dela, havia algo mais: uma história de pobreza. De exploração, uma história que eu conhecia havia muito tempo”.
Outro trabalho importante foi Êxodos, um projeto fotográfico feito em parceria com organizações humanitárias como a UNHCR e a Unicef. “Êxodos me mobilizou por cerca de seis anos, ao longo dos quais percorri diversos países, da Índia à América Latina (…). Em toda parte constatei, com muita tristeza, a degradação das condições de vida. Vi ilhas de riqueza num oceano de pobreza”. O trabalho fotográfico foi feito no intuito de registrar o fluxo imigratório das pessoas em busca de condições de trabalho. “As pessoas são deslocadas essencialmente pelas mesmas razões econômicas que favorecem uma minoria, enquanto uma maioria se torna miserável (…). Em toda parte a superpopulação amplia os mesmos males: precariedade, violência, epidemias… Às vésperas do terceiro milênio, eu quis mostrar essas pessoas em trânsito, sua coragem diante do desenraizamento, sua incrível capacidade de adaptação a situações em geral muito difíceis”.
No Brasil, seu grande trabalho foi o lançamento de Terra, um projeto fotográfico que Sebastião classificou como “um verdadeiro manifesto escrito a quatro mãos para o MST”. Passados esses 15 anos dos registros de Terra, foram feitas várias exposições-vendas nos quatro continentes do planeta com o objetivo tanto de coletar fundos e divulgar a história desses “combatentes da terra”, e todo rendimento das exposições foi dado ao MST.
É nessa tentativa de construir um mundo mais justo e habitável, que ele realiza seus trabalhos: “Nenhuma foto, sozinha, pode mudar o que quer que seja a pobreza do mundo. No entanto, minhas imagens fazem parte de um movimento mais amplo de denúncia da violência, da exclusão e da problemática ecológica. Esses meios de informação contribuem para sensibilizar aqueles que contemplam a respeito da capacidade que temos de mudar o destino da humanidade”.
Bruno Silvestre é militante da UJR