Sobre a democracia

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LENIN

É comum, sobretudo em momentos de crise política, parlamentares de diversos partidos e correntes ideológicas trazerem à tona o argumento de que “apesar de todos os males que nosso país enfrenta, vivemos numa democracia, e isso é o mais importante a preservarmos”, ou então “a democracia é a melhor forma de governo que já se conheceu até hoje”. E o que vemos na prática não condiz nem um pouco com o que os parlamentares burgueses expressam: corrupção, estelionato eleitoral, falsas promessas de campanha, esquemas ilícitos em aprovação de projetos e emendas, falsas propagandas, desvio de verbas, repressão policial. Para entender melhor como essa falsa paixão democrática é espalhada, não só no Brasil, mas em todo o mundo, é necessário analisar historicamente a construção dessas ideias.

O que é democracia?

Primeiro, para explicar os problemas existentes na sociedade capitalista, utilizam o velho argumento da “natureza humana”, expresso no livro Leviatã, do filósofo britânico Thomas Hobbes. Tradicional defensor da monarquia, Hobbes explicava que o comportamento corruptível do homem era algo natural do seu ser. “Na natureza do homem, encontramos três estágios de discórdia: primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacarem os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação” (Hobbes, O Leviatã, pg. 46). Mesmo muito tempo depois, essa argumentação ainda é usada pelas elites da nossa sociedade para justificar todos os males que ela comete.

Destoando um pouco deste raciocínio, surgem os teóricos liberais clássicos, que definem com mais clareza o conceito de “democracia” nos dias atuais. John Locke, um dos grandes teóricos dessa escola, fazia árduas críticas ao regime aristocrático e à concentração de poder na monarquia, e como alternativa a isso ele propunha a institucionalização da propriedade. “É impossível que qualquer homem, exceto um monarca universal, tenha qualquer propriedade, partindo-se de uma suposição de que Deus deu o mundo a Adão e a seus herdeiros na sucessão, excluindo-se todo o resto de sua descendência” (Locke, Segundo Tratado do Governo Civil, pg. 42).

Segundo Locke, a propriedade privada seria conferida aos homens em geral, possibilitando que todos possam usufruir de sua sobrevivência. E apesar de contestar o poder monárquico, não somente Locke, mas a Teoria Liberal em si, absorve muito da ideia do “homem natural” expressa por Hobbes, como tentativa de justificar as contradições da democracia liberal, e normalizando-as como algo impossível de ser resolvido. “A sociedade civil tem por finalidade evitar e remediar aquelas inconveniências do estado de natureza que se tornam inevitáveis sempre que cada homem julga em causa própria, instituindo uma autoridade conhecida a que todos daquela sociedade podem apelar a qualquer injúria recebida (…) e que todos devem obedecer”. (Locke, idem).

Outro aspecto da sociedade “democrática” é a liberdade individual, que já era ressaltada por Alexis de Tocqueville, em sua obra Democracia na América. “Assim, os homens nos tempos democráticos necessitam ser livres, a fim de alcançar mais facilmente as fruições materiais pelas quais suspiram sem cessar” (Tocqueville, Democracia na América pg. 172). Tocqueville também trata da meritocracia e de uma sociedade de classes. “Ainda não se viu uma sociedade em que as condições fossem tão iguais que não se encontrassem nela nem ricos nem pobres. A democracia não impede que essas duas classes de homens existam; mas muda seu espírito e modifica suas relações (…) a cada instante, o servidor pode se tornar amo e aspira a vir a sê-lo; portanto, o servidor não é um homem diferente do amo” (Tocqueville, idem).

Democracia para quem?

Essas concepções de democracia e liberdade nada mais são do que argumentos para a manutenção dos privilégios de quem realmente lucra com os descasos da falsa democracia em que vivemos: as elites sociais e parlamentares. Apesar das teorias liberais terem surgimento num contexto revolucionário (a era das revoluções burguesas), atualmente suas fundamentações encontram-se envelhecidas e não possuem mais o efeito revolucionário da época em que lutavam contra o seu antigo inimigo de classe, a aristocracia. Como nos ensina Lênin em seu livro O Estado e a Revolução, “as classes exploradoras precisam da dominação política para a manutenção da exploração, no interesse egoísta de uma ínfima minoria contra a imensa maioria do povo” (Lênin, O Estado e a Revolução pg. 31).

No livro A Ideologia Alemã, Karl Marx também nos ensina que as ideias dominantes em uma sociedade nada mais são do que as ideias da classe dominante. Os indivíduos que possuem o controle da superestrutura da nossa sociedade são também aqueles que controlam o fluxo de informação e as ideias que a permeiam. A argumentação de que vivemos num sistema democrático nada mais seria que uma forma de velar que na verdade vivemos num sistema de exploração. Em 1884, Friederich Engels em sua obra A Origem do Estado, da Família e da Propriedade Privada já conseguia analisar os efeitos desta democracia, que atualmente parecem de difícil solução. “Na república democrática, a riqueza utiliza-se do seu poder indiretamente, mas com maior segurança; primeiro, pela corrupção pura e simples dos funcionários (América); depois, pela aliança entre o governo e a bolsa (França)”.

Vale também ressaltar que a ideia de que o egoísmo, o individualismo e a ganância são tidos como parte de uma “natureza humana” não possui embasamento teórico algum. Apesar de observarmos na sociedade capitalista um punhado de situações onde os indivíduos expressam essas características, a ciência já pôde nos mostrar que isso é a forma como as pessoas concebem a realidade em que vivem e não de um fator genético inalterável. Em meados dos anos 1990, cientistas da Universidade de Parma, na Itália, realizaram uma descoberta que modificou a ideia de tratar o comportamento humano. Eles descobriram os “neurônios-espelhos”, uma estrutura neurológica que indica que as pessoas executam ações, concebem pensamentos e ideias sempre se baseando nos exemplos de outras pessoas ou de determinadas coisas em seu meio.

Essa comprovação científica demonstra que o cérebro humano reflete ações exteriores a ele e nega a ideia de que o homem tem atitudes isoladas do mundo exterior. Como já havia dito Locke, a democracia tem como função principal preservar a propriedade. “Por poder político, então, eu entendo o direito de fazer leis, aplicando a pena de morte, ou, por via de consequência, qualquer pena menos severa, a fim de regulamentar e de preservar a propriedade” (Locke, Segundo Tratado do Governo Civil pg. 35). Pois é neste raciocínio que funciona nossa democracia: o déficit habitacional de moradia causada pela especulação imobiliária; o aumento dos preços nos planos de saúde graças à privatização do sistema de saúde; o aumento das passagens de ônibus no intuito de favorecer as máfias dos cartéis de transportes. Cada situação dessas reflete as ações do Estado para garantir os lucros e a manutenção da propriedade e seus monopólios. E enquanto a propriedade aumenta sua hegemonia e aumenta seu poder, a classe trabalhadora continua a sofrer com o aumento dos seus custos de vida e a dificuldade cada vez maior de obter uma estabilidade e uma dignidade na vida.

Democracia popular

O termo democracia é de origem grega, sendo a junção de duas palavras, Demos e Kratos, que significa “governo do povo” ou “poder do povo”. E para se chegar a essa ideia de democracia é necessário construir uma democracia direta, sem burocracia, em uma sociedade sem distinções econômicas de indivíduos. Só assim se chegará a esse poder popular.

Lênin nos dá este norte: “Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, só então é que o Estado deixará de existir e se poderá falar em liberdade. Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma” (Lênin, O Estado e a Revolução pg. 110).

Bruno Silvestre, UJR Recife