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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Maioria das vítimas de microcefalia são de famílias pobres

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A recente epidemia do vírus da zika no Brasil trouxe consigo, além do debate da precariedade da saúde pública, que não consegue controlar um mosquito, a imagem escancarada do abismo social em que vivemos. A maior parte dos casos de infecção por arboviroses (nome dado às infecções transmitidas pelo mosquito – dengue, chicungunha e zika) ocorre nas regiões mais pobres, onde não existe saneamento básico e o abastecimento d´água é precário.

Segundo Nota Técnica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), divulgada em fevereiro deste ano, “as precárias condições de moradia, de urbanização e de saneamento ambiental, contexto característico da grande maioria dos casos de microcefalia, refletem um modelo de desenvolvimento e de políticas urbanas que atinge aos pobres, já vulnerabilizados historicamente pela abissal desigualdade social brasileira. Habitações sem condições para adequado armazenamento de água domiciliar, localizadas em áreas íngremes ou alagadas, com precária infraestrutura e urbanização e com serviços de saneamento precários. Um contexto que reflete a mazela social que destina melhor infraestrutura e melhores serviços para as classes média e alta”.

O próprio acesso à água encanada é uma dificuldade para a população da periferia, sendo apontada como um dos principais agentes da manutenção dos criadouros dos mosquitos. “Uma das expressões dessa desigualdade é no rodízio semanal do acesso ou na intermitência do abastecimento d´água. A grande maioria de casos de microcefalia ocorre em cidades com problemas sérios de rodízio ou intermitência, onde os mais pobres ficam mais dias por semana sem água e os mais ricos ou não têm rodízio ou o têm por poucos dias. A crise hídrica e a má gestão dos serviços de saneamento também têm imposto o rodízio a cidades inteiras e mesmo o colapso no abastecimento, cenário de muitos casos de microcefalia no Nordeste”, completa a Nota.

O foco das campanhas do governo

Outra denúncia realizada pela Abrasco é com relação aos caminhos adotados pelo Governo Federal para a campanha de combate ao Aedes aegypti. Apesar de se ter claro quais fatores originam os criadouros do mosquito (e, por consequência, como eliminá-los), a meta da campanha não é investir em saneamento básico, melhoria da infraestrutura nos bairros marginalizados ou garantir o abastecimento regular de água nas casas, evitando o seu acúmulo em caixas d’água ou bacias. A principal ação do governo se resume à utilização de agentes químicos (larvicidas) para matar o mosquito.

Para a Associação, o uso dos larvicidas não tem se mostrado eficaz ao longo dos 40 anos da história da dengue no Brasil. Pior: o uso indiscriminado de produtos químicos aumenta a resistência do mosquito, fazendo com que, com o tempo, ele não tenha mais efeito, além de colocar em risco à saúde da população, já que o produto é colocado na água que muitas vezes é utilizada também para consumo humano. “A propósito, se visitarmos as periferias das grandes cidades e as chamadas zonas especiais socialmente vulneráveis, onde as carências são de toda ordem, ver-se-á um quadro sanitário tão grave que nenhuma quantidade de veneno poderá resolver o controle vetorial”, diz a nota da Abrasco.

A microcefalia se concentra nos bairros pobres

O grande número de casos de nascimento de bebês com microcefalia em regiões da periferia se explica pelas questões sociais dos lugares que concentram focos do mosquito. Segundo o secretário de Desenvolvimento Social, da Criança e Juventude do Estado de Pernambuco, Isaltino Nascimento, “99% das famílias que entravam nas notificações de suspeita de microcefalia e estavam cadastradas no Cadastro Único ganham até meio salário mínimo por pessoa, R$ 440. Além disso, 77% delas estão no perfil de extrema pobreza”. (Jornal do Commercio, 26/02/16).

Outra questão que não pode ser deixada de lado é a dificuldade de acesso das mulheres pobres ao aborto seguro, coisa que não ocorre para mulheres das classes mais ricas. Em matéria divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, a jornalista Cláudia Collucci alertou para a realização de aborto por mulheres grávidas de bebês com microcefalia. “Grávidas com diagnóstico de infecção pelo vírus da zika estão recorrendo ao aborto clandestino (…). Os preços dos procedimentos em clínicas particulares variam entre R$ 5 mil e R$ 15 mil, dependendo da estrutura e do estágio da gestação. Três médicos relataram à Folha casos de mulheres que já tomaram essa decisão. Todas são casadas, têm educação superior, boas condições financeiras e tinham planejado a gravidez, mas se desesperaram com a possibilidade de a criança desenvolver a má-formação”. Mais uma vez se prova que a proibição do aborto atinge só as mulheres mais pobres, que não têm condições de pagar uma clínica particular para fazer, com segurança, um aborto. Para os ricos, o aborto é permitido.

É importante frisar também que justamente essa população mais pobre é a que menos tem acesso à saúde e educação de qualidade. Devido à má-formação do cérebro, essas crianças têm um desenvolvimento mental e motor diferente das outras crianças, precisando de um acompanhamento especial, tanto na educação quanto com relação aos cuidados médicos. Cabe a pergunta: como serão acompanhadas durante o seu crescimento?

 Indústria farmacêutica comemora lucros

Quem sai lucrando com toda essa verdadeira tragédia ainda são os grandes empresários. O aumento da epidemia causou o crescimento do uso de agentes químicos para matar os mosquitos, distribuídos inclusive pelo próprio Ministério da Saúde. Os larvicidas são entregues de casa em casa através da visita dos agentes de saúde ambiental; o consumo de repelentes cresceu tanto que chegou a faltar no mercado por um período (o que fez, inclusive, com que seu preço aumentasse); a venda de remédios para controle da dor e outros sintomas também cresceu exponencialmente.

Enquanto o governo continuar se utilizando de meios ineficazes para controlar essas doenças, nada irá mudar. É necessário investir em melhorias para os bairros e comunidades mais carentes, diminuindo o abismo social existente entre a periferia e os centros elitizados, e dando igual oportunidade de acesso à saúde a todos os cidadãos, independente do poder aquisitivo.

Ludmila Outtes, Recife.

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