A manhã do dia 14 de junho de 2016 pode ser descrita pelo povo Guarani e Kaiowa com uma palavra: dor! O jovem agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, 23 anos, foi assassinado na terra indígena retomada Amambai Peguá (fazenda Yvu), Município de Caarapó, próximo a Dourados, no Mato Grosso do Sul (MS).
O caso de Clodiodi é mais um de tantas mortes de indígenas no MS na retomada de suas terras ancestrais. Os Guarani e Kaiowa estavam pacificamente na terra indígena Amambai Peguá quando foram surpreendidos por vários veículos, inclusive tratores e caminhonetes de fazendeiros e seguranças das fazendas, rojões e tiros, que foram desferidos contra a comunidade indígena desprotegida, numa área aberta, não tendo assim ocorrido um conflito, mas sim um ataque.
Motos, bicicletas, panelas, roupas e outros pertences da comunidade foram queimados. O tiroteio durou horas, deixando pelo menos sete feridos – cinco adultos e uma criança de 12 anos e Clodiodi Aquileu, que, por conta da gravidade dos ferimentos, veio a falecer no local. Segundo um dos médicos que atendeu os indígenas, os tiros foram desferidos na barriga, cabeça e tórax das vítimas, comprovando a intenção assassina do ataque. Um vídeo gravado por indígenas e colocado na internet mostra o momento em que vários homens começam a atirar e desferir palavras pejorativas como “Bugres”, comprovando o enorme preconceito que ainda existe contra os povos indígenas no MS. Esse é o retrato da luta fundiária no País, mas a coisa vem de muito antes disso.
O confinamento do povo Guarani e a luta pelo tekoha
Desde a invasão do Brasil pelos colonizadores europeus, em 1500, os povos originários vêm sofrendo todo tipo de violências físicas e psicológicas, no intuito de expulsá-los de suas terras tradicionais. Muitas das terras hoje ocupadas por latifundiários já tinham donos! Com os Guarani e Kaiowa a história não foi diferente. A história da desterritorialização destes povos tem início com a guerra do Paraguai, no final do século 19, quando a companhia Matte Laranjeiras teve a concessão de suas terras pelo governo do MS para a exploração da erva mate, modificando assim o ambiente e o cotidiano desses povos originários.
Já no inicio do século 20, os indígenas foram sendo expulsos de seus territórios tradicionais e, sem poder viver mais em suas terras, os Guarani e Kaiowa foram confinados em reservas, criadas pelo Governo através do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atual Fundação Nacional do Índio (Funai), enquanto suas terras estavam sendo ocupadas e colonizadas por não indígenas, que obtiveram títulos de propriedade privada dos territórios tradicionais, introduzindo a monocultura, objetivando a mercantilizarão de suas terras.
Vê-se que essas reservas indígenas foram criadas pelo Estado com o intuito de retirar os indígenas de suas terras tradicionais e confiná-los em pequenos espaços de terra, como uma política de colonização e mercantilização de seus territórios tradicionais. Essas expulsões não ocorreram de forma pacífica. Os indígenas não eram consultados, mas desalojados de forma violenta, com sérias violações aos seus direitos como cidadãos e seres humanos.
A população dos Guarani e Kaiowa no Mato Grosso do Sul soma aproximadamente 50 mil pessoas (segundo o Instituto Humanitas/Unisinos), confinados em reservas indígenas e acampamentos, verdadeiros guetos humanos. A maior parte da população vive na reserva indígena de Dourados, a mais violenta do MS. O confinamento dos Guarani e Kaiowá nestes guetos trouxe sérios prejuízos para esses povos, entre eles, suicídios, fome (quase não possuem área para plantar, pois tudo está sendo tomado pela monocultura e a pecuária), precariedade na saúde, educação, segurança, falta de água potável, etc. Inconformados com a situação que estavam vivendo, os indígenas resolveram retomar as suas terras ancestrais ocupadas pelos fazendeiros, cansados de esperar anos pela demarcação de suas terras pelo Governo Federal, que nunca se mostrou eficaz na defesa dos direitos indígenas. Desde então, eles vêm sofrendo mais violências, inclusive com assassinatos, para serem impedidos de retornarem aos seus territórios tradicionais, o seu antigo tekoha.
O tekoha para os povos indígenas é o seu lugar de origem, de religiosidade, sua forma de viver, educar, local que lhe dá a estrutura territorial necessária à sua sobrevivência cultural. Se é certo dizer que a terra não pertence ao indígena, o indígena é que pertence a terra, também é certo dizer que o tekoha é o modo de viver indígena. A terra não é apenas um território, um meio de subsistência, mas também faz parte da sua organização social e religiosa, o seu tekoha. A terra para o indígena é uma questão de pertencimento, de sentimento, de partilha, de integração, que não pode ser entendida dentro de uma lógica capitalista que ver a terra como mercadoria, coisa a ser explorada, lucro. A terra para os indígenas é vista como fonte de vida, mãe, que tudo lhes dá, a terra sofre, sangra, reage. Não compreende uma relação de dominação da natureza, mas um modelo sustentável de desenvolvimento, de respeito, amor e preservação da natureza. Tirar os indígenas de suas terras ancestrais é como tirar a sua própria vida!
Uma carta enviada à presidenta Dilma Rousseff, em janeiro de 2011, pelo povo Guarani Kaiowa, descreve bem esse sentimento indígena pela terra. Num trecho da carta:
“Presidenta Dilma: nos roubaram nossa mãe; ela foi maltratada; fizeram sangrar suas veias; danificaram sua pele; quebraram seus ossos. Rios, peixes, árvores, animais e aves… tudo foi sacrificado em nome do que chamam progresso. Para nós, é destruição, é matança, é crueldade.”
A violência contra os povos indígenas e Apyka’i, um exemplo de resistência
Os dados do Relatório – Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2014, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), demonstram que os números da violência contra os povos indígenas só aumentaram. Em 2014, foram registradas 31 tentativas de homicídios; 20 casos de homicídio culposo através de atropelamentos; 29 casos relacionados a ameaças de morte; 18 casos relativos a lesões corporais dolosas; 16 casos de abuso de poder, com 108 vítimas; 19 casos de racismo e discriminação étnico-cultural; 18 casos de violências sexuais, inclusive com casos de aliciamento de adolescentes indígenas para a prostituição; 79 casos de desassistência na área da saúde, alta taxa de mortalidade infantil, com registro de 785 mortes de crianças entre 0 e 5 anos em 2014; 13 casos de disseminação de bebida alcoólica e outras drogas em comunidades indígenas; 53 casos de desassistência na área da educação escolar indígena; assassinato de 70 indígenas, sendo Mato Grosso do Sul o estado que apresenta o maior número de casos, com 25 assassinatos. Esses dados só comprovam o descaso e o abandono que os povos indígenas estão sofrendo no País.
A terra indígena de Apyka’i é um exemplo de luta e resistência do povo Guarani e Kaiowa do Município de Dourados. Sua Cacique Damiana Cavanha, de 74 anos, é um símbolo da luta pela retomada de seu território tradicional; de pequena estatura, essa mulher é gigante na luta pelos seus direitos, pelo seu tekoha sagrado. Damiana é a última cacique de Apyka’i. Moram à beira de uma rodovia (BR 463), sem eletricidade, água potável, cuidados médicos, alimentação adequada, etc. A falta de água potável acarreta muitas doenças, principalmente nas crianças, que são acometidas por coceiras e diarreia, sendo a mortalidade infantil alta entre os Guarani e Kaiowa. A assistência à saúde só chega no local a cada 15 dias e a comunidade não dispõe de um agente de saúde.
A violência é outra constante na vida de Apyka’i: despejos, ameaças e mortes marcam a vida da comunidade. Dona Damiana viu a morte de seu pai quando tinha 11 anos de idade, viu seu povo ser expulso de suas terras tradicionais, ter suas casas e pertences queimados, viu uma tia já idosa morrer por intoxicação por agrotóxicos despejados por um avião sobre a comunidade, perdeu seu marido, três filhos e um netinho de apenas quatro anos na luta pela terra: “… somos tratados como animais em nossa terra, em nosso País… Sou vovó, vi meu neto Gabriel morrer, a camioneta passou três vezes em cima dele… Tive que juntar os restos de meu neto. Ele tinha só quatro anos”.
Os Guarani e Kaiowa de Apyka’i já esperam há mais de 20 anos na beira da estrada pela demarcação de suas terras, estão confinados entre a monocultura de cana-de-açúcar e a rodovia, numa pequena área de sua terra tradicional. Tendo sido despejados várias vezes com violência, os indígenas de Apyka’i sempre retornam para um pedacinho da sua terra ancestral, pois a maior parte de suas terras foi tomada por fazendeiros. Os indígenas são perseguidos e intimidados a abandonarem a sua terra ancestral! A dona Damiana diz que não vai sair de sua terra, que se preciso for, prefere morrer e ser enterrada ali.
Meio ambiente e a política de extermínio dos povos indígenas
A desterritorialização dos povos indígenas trouxe sérias consequências para o meio ambiente, com a introdução da monocultura e outras práticas não sustentáveis de desenvolvimento, como a pecuária, que causam grandes impactos ambientais. A pauta indígena e ambiental nunca foi prioridade em nenhum governo no Brasil. O Estado sempre se mostrou pouco eficaz no que diz respeito à preservação ambiental e à segurança e garantia dos direitos dos povos originários.
“Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, correspondendo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
O extermínio dos povos indígenas no Brasil não foi nem é por acaso, faz parte de uma política de desterritorialização de suas terras tradicionais, objetivando a colonização dessas terras para monocultura e a pecuária extensiva; faz parte de uma visão ainda colonialista, racista, etnocêntrica, discriminatória e etnocida, que desumaniza o outro, com o objetivo de inferiorizarão de determinado grupo de pessoas.
Em uma sociedade ainda com uma mentalidade colonizada, um Estado conivente com os interesses econômicos do agronegócio, a impunidade dos assassinos dos povos indígenas e o preconceito só contribuem para agravar a situação de invisibilidade, violência e abandono em que essas populações estão submetidas. Virar as costas para os povos indígenas não é apenas ignorar a nossa História, mas também a destruição da natureza, é ignorar o genocídio de seres humanos que resistem bravamente a 516 anos de massacres e que lutam pelo direito de existir e de viver conforme a sua cultura.
O respeito aos povos indígenas passa também pelo respeito a nós mesmos, a nossa história, origem, ao nosso passado, ao nosso futuro, à preservação do meio ambiente e à construção de um mundo melhor para todos os povos! Chega de genocídio indígena! Demarcação já!
Maria da Conceição, bióloga, com colaboração de Onildo Lopes