A violência das Forças Armadas nos porões da ditadura

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No último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a Justiça Federal em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra Antonio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão, pelo estupro da ex-presa política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da famigerada Casa da Morte, aparelho clandestino do Exército utilizado durante a ditadura militar para torturar e assassinar opositores do regime.

Na justificativa, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho se apoia na Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979) e afirma que desrespeitá-la “ofende a dignidade humana”. Mas que autoridade tem uma lei que livrou da cadeia os responsáveis pelas perseguições, prisões ilegais, torturas, estupros, execuções e desaparecimentos praticados durante a ditadura? Além disso, o que pode ofender mais a dignidade humana que um estupro?

Em sua sentença, o juiz disse ainda que não há provas documentais do crime, apenas reportagens, entrevistas, “sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros” e que a vítima prestou queixa apenas oito anos após o ocorrido. “A decisão judicial ignora ou desqualifica todas as provas obtidas, inclusive a palavra da vítima, dizendo que o fato só foi relatado após oito anos do ocorrido, como se fosse possível à vítima ir a uma delegacia de polícia em 1971 registrar queixa contra os militares que a violentaram e torturaram”, contesta o procurador da República no Rio de Janeiro, Sérgio Suiama, um dos autores da denúncia contra Camarão. Suiama classificou a decisão como “terceiro estupro de Inês Etienne Romeu”.

Os crimes das Forças Armadas

Esse é apenas um dos milhares de crimes cometidos pelos militares durante a ditadura e que permanecem até hoje impunes. Quando a Comissão Nacional da Verdade (CNV) divulgou o relatório final de seus trabalhos, em dezembro 2014, foi enfática ao afirmar que, durante os anos de ditadura militar (1964 – 1985), o Estado brasileiro praticou, “de forma massiva e sistemática”, prisões ilegais, torturas, espancamentos, assassinatos, estupros e o desaparecimento de milhares de pessoas.

Ao todo, mais de 30 mil brasileiros foram presos e torturados pela ditadura. Destes, 434 morreram ou desapareceram, sendo que 191 foram assassinados sumariamente ou durante as torturas. No relatório da CNV são descritos os tipos de tortura e métodos usados pelos militares para obter informações de presos políticos, tais como o pau-de-arara, afogamento, unhas e mamilos arrancados, corpo queimado com vela, cigarro ou maçarico, simulação de execução, estupro, entre outros. Um capítulo inteiro (cap. 15) é dedicado à descrição de instituições e locais associados à tortura e às “graves violações de direitos humanos”.

Financiadas pelo imperialismo norte-americano e por grandes empresas capitalistas nacionais e estrangeiras, as Forças Armadas brasileiras montaram uma complexa e perversa rede de repressão contra o povo e as organizações revolucionárias que lutavam contra a ditadura fascista. Além das estruturas oficiais (Dops, DOI-Codi, Cenimar, etc.) localizadas em todas as cidades onde havia algum quartel do Exército, Marinha ou Força Aérea, a ditadura criou centros clandestinos de tortura e execução de presos políticos. O objetivo era impedir o acesso de familiares e advogados aos presos e evitar a identificação dos torturadores, em especial da linha de comando, como acontecia quando a tortura era praticada dentro de quartéis ou delegacias. Dessa forma, era quase impossível conseguir pistas que levassem à identificação dos militantes presos e às circunstâncias em torno das prisões, torturas, mortes e desaparecimentos.

Esses aparelhos clandestinos de repressão funcionaram por aproximadamente dez anos, entre 1966 e 1975-76. Em geral, eram montados em imóveis particulares cedidos por colaboradores da ditadura, entre eles muitos empresários e fazendeiros. Ao todo, foram identificados onze imóveis, entre casas e sítios. São eles: Casa Azul (Marabá/PA), Casa da Morte (Petrópolis/RJ), Casa de São Conrado (RJ), Fazenda 31 de Março (SP), Casa de Itapevi (SP), Casa do Ipiranga (SP), Dopinha (Porto Alegre/RS), Clínica Marumbi (Curitiba/PR), Casa dos Horrores (Maranguape/CE), Granjas do Terror (Campina Grande/PB) e Fazendinha (Alagoinhas/BA).

Em Marabá (PA), onde funcionou a chamada Casa Azul, calcula-se que mais de 30 militantes envolvidos na guerrilha do Araguaia tenham sido torturados e executados. Entre os torturadores figuram nomes como o do coronel Curió e o do ex-senador e delegado da Polícia Federal Romeu Tuma.

Em Petrópolis (RJ) funcionou o mais conhecido centro clandestino de repressão da ditadura, a Casa da Morte. Durante quatro anos (1971-1974), o imóvel foi base para a tortura e assassinato de militantes como Honestino Guimarães, Ana Rosa Kucinski, David Capistrano, Marilena Villas Boas, Fernando Santa Cruz e o ex-deputado Rubens Paiva, entre outros.

Também no Rio de Janeiro funcionou a Casa de São Conrado. Diretamente ligada ao Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e ao bando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, a localização do imóvel permanece desconhecida até hoje.

Já em Itapevi, região metropolitana de São Paulo, um aparelho foi montado pelo DOI-Codi do II Exército para a tortura e execução de militantes ligados ao PCB. Lá foram mortos Luiz Ignácio Maranhão Filho, João Massena Melo, Élson Costa, Hiram de Lima Pereira, Jayme Amorim de Miranda, Itair José Veloso, José Montenegro de Lima e Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, cujos corpos ainda estão desaparecidos. Na Fazenda 31 de Março foram executados Antônio Carlos Bicalho Lana, Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, um dos comandantes da Ação Libertadora Nacional (ALN).

A face mais bárbara do regime militar fascista foi reservada, certamente, aos comunistas, homens e mulheres que lutaram heroicamente contra a ditadura e pelo socialismo. Os dirigentes do PCR Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra foram dois deles. Após serem presos, em agosto de 1973, foram levados para o DOI-CODI do IV Exército, no Recife, onde foram submetidos a todo tipo torturas por dezenove dias seguidos: despidos, foram pendurados no pau-de-arara (cavalete em que se fica preso por uma barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos), tiveram seus corpos espancados, receberam choques elétricos no pênis, mãos, pés e orelhas, foram queimados com vela e cigarros, etc. Manoel Lisboa, logo nos primeiros dias de torturas, perdeu a sensibilidade dos membros inferiores, ao ponto de não mais poder se locomover nem se alimentar. Apesar disso, a repressão não arrancou uma só palavra deles.

Basta de impunidade

Exército, Marinha e Força Aérea têm uma longa ficha corrida de crimes cometidos para defender os privilégios das classes dominantes de nosso país. Junto com a polícia, as Forças Armadas são instrumentos fundamentais para reprimir os trabalhadores e impedir uma transformação profunda no Brasil. Não é à toa que o governo Temer, enquanto congela por 20 anos os investimentos em saúde e educação, aumentou em 36% os investimentos na área militar em 2016. Para este ano estão previstos repasses no valor de R$ 9,7 bilhões.

É por isso que não podemos esperar de um governo comprometido de corpo e alma com os interesses capitalistas, nem do corrupto Poder Judiciário, uma atitude séria no sentido de colocar em prática a mais importante das 29 recomendações presentes no relatório da Comissão Nacional da Verdade: a que determina que o Estado brasileiro responsabilize criminalmente e puna “os agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado”.

Apenas a pressão popular e um governo que verdadeiramente represente a vontade do povo brasileiro poderão construir uma nova cultura política em nosso país, baseada no respeito aos direitos humanos, aos valores democráticos e na certeza de que qualquer violação da dignidade dos cidadãos, ainda tão presente em nossa sociedade, será punida exemplarmente para que novos estupros de pessoas como Inês Etienne Romeu nunca mais aconteçam.

Da Redação