O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo criado em 1972 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), portanto, baseado nos princípios cristãos, tem como objetivo apoiar os povos e as organizações indígenas, respeitando sua pluralidade étnico-cultural e histórica e defendendo uma sociedade democrática, pluriétnica, justa e solidária no momento em que os povos indígenas sofrem diversos ataques aos seus direitos, são expulsos de suas terras e têm sua cultura ameaçada de morte. Em entrevista a A Verdade, Alcilene Bezerra Silva, coordenadora do Cimi Nordeste, denuncia que o Governo Temer tem apoiado projetos de lei e adotado decretos visando a aniquilar qualquer possibilidade de demarcação dos territórios indígenas e impor o chamado marco temporal.
Hinamar Medeiros, Recife
A Verdade – Qual sua avaliação sobre a luta dos povos indígenas para garantir o direito à posse da terra?
Alcilene Bezerra Silva – Historicamente a luta pela vida dos povos indígenas do Brasil é marcada por violências, expulsão de seus territórios e morte física e cultural. O processo de ressurgência dos povos, principalmente na região Nordeste, se deu a partir dos anos 1970, com suas formas de reorganização sociopolítica, que garantiram o reconhecimento de suas identidades étnicas e, consequentemente, de seus territórios tradicionais. Surgiram aliados como as universidades, o próprio Cimi, e ONGs indigenistas e ambientais, que formaram com os povos indígenas um importante movimento, trazendo a questão dos índios para a pauta dos governos.
Neste contexto, os direitos indígenas sempre foram confrontados e ignorados, uma vez que eles constituem entraves ao “desenvolvimento” predatório feito pelo Estado. No entendimento dos setores dominantes, os índios são um “problema”, na medida em que atrapalhavam os planos de expansão da Colônia, do Império e da República, e atualmente do capital e de um suposto desenvolvimento econômico que é excludente. Dobrando-se a uma concepção desenvolvimentista, o atual governo federal tomou a decisão de paralisar as demarcações das terras reivindicadas pelos povos.
Apesar dessas adversidades, a população indígena vem crescendo nas últimas décadas, não apenas pelo aumento de nascimentos, mas também pela coragem e a liberdade conquistadas de assumir suas identidades étnicas e etnônimos (nomes de povos e tribos), o que não era possível antes da Constituição de 1988, quando eram tutelados pelo Estado Brasileiro, não sendo, portanto, cidadãos de direito.
Em Pernambuco, na atualidade, verifica-se a presença de 12 povos indígenas que resistiram aos séculos de violência a que foram submetidos. No Brasil, são mais de 305, contando com os povos em situação de isolamento voluntário (IBGE, 2010). São mais de 200 línguas diferentes, conhecimentos profundos em centenas de culturas distintas, uma pluralidade rara no mundo e que pode ser fundamental para o futuro da humanidade.
Como as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a demarcação das terras indígenas e o chamado “marco temporal” afetam os povos indígenas?
Os povos indígenas eram tutelados até 5 de outubro de 1988 e, por esse motivo, não tinham permissão da lei e do Estado para ingressar com ações judiciais – depois de terem passado sob o jugo da ditadura militar, quando foram castigados, violentados e até mesmo mortos pelo Estado de exceção – se quisessem voltar aos territórios de onde foram retirados à força.
Conquistaram, com a Constituição, o direito da autorrepresentação, passando a instituir formas próprias de organização e a representar juridicamente seus interesses (presentes nos artigos 231 e 232 da Carta Magna).
O atual governo, sem representação popular, tem apoiado projetos de lei, emendas à Constituição Federal e decretos visando a aniquilar qualquer possibilidade de que demarcações dos territórios indígenas sejam normatizadas pela lei maior do país. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se voltam contra os povos indígenas no âmbito legislativo, tramitam hoje no Congresso Nacional mais de 100 proposições que visam a alterar artigos concernentes aos direitos indígenas na Constituição e outras normas jurídicas que regulam o reconhecimento étnico e a demarcação de seus territórios.
A tese do “marco temporal”, que reconhece os territórios indígenas como apenas aqueles ocupados pelos povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, traz como fundamento a restrição do direito constitucional indígena, sendo uma interpretação que afronta inclusive a jurisprudência consolidada pelo STF e a história de violências vividas pelos povos indígenas. Na compreensão do Cimi, a tese é inconstitucional na medida em que a Constituição reconheceu direitos territoriais como originários, anteriores ao próprio Estado brasileiro.
Como os povos indígenas poderiam estar em seus territórios tradicionais em 5 de outubro de 1988, depois de 488 anos de violência, guerras, expulsões e perseguições? Não é uma contradição? Ou negação da história do Brasil?
As conquistas na Constituição Federal de 1988 são fruto de uma luta constante dos povos, que, de forma organizada, conseguiram resistir ao processo de espoliação e se autoafirmar como povos originários com seus costumes, línguas, culturas e crenças. Por outro lado, o marco temporal consolida uma perspectiva defendida pelos ruralistas, representantes políticos do agronegócio, de que as vítimas (os povos indígenas) devem pagar pelos erros que o Estado cometeu ao permitir e até mesmo conduzir as expulsões forçadas. E não falamos do século 17, falamos de duas, três décadas antes de 1988, ou seja, todo o decorrer do século 20.
Ao decidir, no dia 16 de agosto de 2017, sobre a improcedência dos pedidos de indenização por parte do Estado do Mato Grosso referentes à demarcação do Parque do Xingu e dos territórios Pareci e Nambikwara, o STF reafirmou um passo irreversível em direção ao reconhecimento da ocupação tradicional e ancestral dos povos, questionando indiretamente a argumentação do marco temporal. A decisão foi unânime: 8 a 0.
Apesar disso, o parecer de n0 001/17 da Advocacia-Geral da União (AGU), já assinado pelo presidente em exercício, passa a orientar a administração federal, determinando que os procedimentos de demarcação de terras indígenas em andamento exijam que as áreas solicitadas estejam ocupadas pelos povos que as reivindicam na data da promulgação da Constituição de 1988.
Vemos que mesmo na sociedade capitalista, na qual o que importa é a propriedade privada, muitas tribos mantêm a posse comum das terras, das habitações, se preocupam com a natureza. Por que isso ocorre?
A terra, para os povos indígenas, é sinônimo de partilha, bem comum. Eles não compartilham a ideia colonial da terra como objeto de especulação, depredação e acumulação de riqueza, mas sim de lugar sagrado. A terra é o elo entre o presente e o passado, é aquilo que acreditam que será o futuro. Espaço de reprodução enquanto coletividade física e cultural.
Os povos indígenas, por sua vez, não se deixam intimidar diante de tantos ataques e se mantêm firmes e coesos em suas ações sistemáticas de resistência e insurgência na defesa e pela efetivação de seus direitos e de seus projetos de vida. Nas culturas indígenas, a reciprocidade, como forma de redistribuir e de ser solidário, é o que regula as relações entre as famílias e as comunidades. O intercâmbio dos objetos é mais importante que os próprios objetos, que não estão avaliados pela ótica dos valores comerciais.
As relações de troca e de ajuda mútua criam laços entre os povos e resultam, para a sociedade, no projeto do bem viver, onde a partilha se opõe à acumulação, e a competição é superada pela colaboração. O bem viver, para os povos indígenas, não significa “ter mais”, e sim “necessitar menos”.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima em cerca de 8.500 o número de assassinatos de indígenas pela ação direta ou de omissão do Estado durante a ditadura militar. Nos últimos anos, tem aumentado o conflito de terras, inclusive com assassinatos de indígenas. Como os povos indígenas têm enfrentado essa violência?
O Cimi publica anualmente o relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil. Os dados de 2015 registraram “55 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio indígena”. Ocorreram, nesse mesmo ano, 54 assassinatos, 12 casos de ameaças de morte, 12 casos relativos a lesões corporais dolosas em consequência de agressões físicas e espancamentos, nove registros de casos de violência sexual e oito casos de abuso de poder. É possível supor que o número de ocorrências seja muito maior, uma vez que o isolamento de povos nas regiões Amazônica e Centro-Oeste não permite registrar e apurar com acuidade este fenômeno.
Neste ano, teve repercussão nacional o caso das agressões aos Gamela, no Maranhão, quando foram atacados por um grupo de pessoas que passaram o dia em um churrasco oferecido por políticos e fazendeiros, no Município de Viana, deixando 22 feridos, alguns com sinais de tentativa de decepar mãos e pernas.
Os povos têm procurado o Ministério Público Federal, através do órgão indigenista (Funai), na tentativa de identificar e punir os agressores, de forma a não permitir que a impunidade incentive novos casos de violência e agressões. Em muitos casos, as polícias locais e até mesmo órgãos públicos criminalizam os povos indígenas e suas lideranças, buscando com isso legitimar as agressões e violências.
Os Gavião, também do Maranhão, criaram uma “guarda florestal” própria com o objetivo de proteger seu território, bastante disputado por madeireiros ilegais que retiram de suas matas sagradas espécies nobres de madeira para comercializar em serrarias – também ilegais –, que fabricam “pranchas” de madeira utilizadas na construção civil e na fabricação de móveis.
Um fator comum nessas situações é a omissão do Estado na proteção aos povos e na garantia de seu direito de ir e vir. A impunidade prevalece na maioria dos casos. Apesar deste cenário, os povos não abrem mão de seus direitos territoriais, criando formas de defender e proteger seus bens naturais e simbólicos, em muitos casos com a própria vida.
Gostei bastante da entrevista. Linguagem acessível, direta, sem muitas complicações. Infelizmente a situação do Brasil não está boa, mas sou otimista e acredito que vai melhor. Por hora, vamos continuar combatendo essas injustiças