Cerca de quatro mil pessoas de pelo menos cinco nacionalidades uniram-se na tarde do último domingo (24) no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, para assistirem a disputa entre Marrocos x Nigéria, finalistas da 4ª Copa dos Refugiados. Crianças, adultos e idosos formaram a animada torcida dos países africanos, entoando canções, segurando placas e bandeiras, dançando na arquibancada e, vez ou outra, destoava do jogo para dar lugar a manifestos antifascistas e contra a xenofobia.
Em campo, a animação da torcida se fez valer por parte dos jogadores. Os marroquinos encerraram o primeiro tempo da partida com o placar zerado, enquanto a Nigéria já contava com quatro gols. No segundo tempo, o Marrocos acertou a bola na rede quatro vezes, que não foram suficientes, porém, para que os times empatassem: o placar final foi de 9×4 para os nigerianos.
Dos conflitos armados ao campo de futebol
Após a entrega das medalhas para os times finalistas da Copa dos Refugiados, o jogador Sayad, da seleção marroquina, deixou o campo e foi de encontro à filha, que o esperava com um sorriso no rosto próxima à saída para os vestiários. Ao vê-la, Sayad imediatamente lhe entregou a medalha que acabara de receber.
O jogador migrou para o Brasil há pouco mais de dez anos e, desde então, se dedica ao futebol pelo menos três vezes por semana. Saiu da metrópole de Casablanca, no Marrocos, no ano em que ocorreram vários ataques terroristas na cidade – supostamente ligados à organização islâmica Al Qaeda. Sayad, no entanto, comenta apenas que deixou seu país natal, pois “lá tem muitos problemas, não dava para viver bem no meio daquilo”.
Integrante da Copa dos Refugiados pela primeira vez, Sayad diz que deseja continuar na seleção marroquina e viver em solo brasileiro. “O Brasil é muito bonito e bom para se viver em paz”, conta o jogador.
Outro estreante da Copa dos Refugiados foi Adimabua Adizuendu, capitão do time da Nigéria, que mostrou entusiasmo para continuar na carreira futebolística. “Eu aproveitei cada minuto do jogo. Como capitão do time, quero levá-lo para muitos lugares e ganhar muitos troféus”, declarou.
Adizuendu está no Brasil há quatro anos e é casado com uma brasileira. Natural do estado de Delta, no sul da Nigéria – de maioria cristã e com aspectos urbanos ocidentalizados –, não conviveu de perto com os problemas que o norte do país, cuja lei vigente é islâmica, enfrenta.
Desde 2002, o norte da Nigéria sofre com conflitos armados e ataques terroristas ligados ao Boko Haram, grupo terrorista islâmico conhecido pelo sequestro de mais de 10 mil mulheres e por ser o precursor da crise de fome que já atinge cerca de 1,5 milhão de pessoas no país, de acordo com matéria publicada no El Pais. O Boko Haram jurava lealdade à Al Qaeda até que, em 2015, se filiou ao Estado Islâmico.
Assim como os 22 jogadores das seleções do Marrocos e da Nigéria, em 2016 cerca de 22,5 milhões de pessoas estavam refugiadas, de acordo com o relatório Tendências Globais: Deslocamentos Forçados em 2016, da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Somente na Copa dos Refugiados, participam 16 seleções, todas formadas por pessoas em situação de refúgio ou imigrantes.
“Não é só o jogo pelo jogo. Queremos quebrar a xenofobia, o preconceito, a ignorância”
Quando o sírio Abdulbaset Jarour idealizou, junto com o congolês Jean Katumba, a Copa dos Refugiados, não imaginava que o projeto faria tanto sucesso. Abdo, como é conhecido, deixou a cidade de Aleppo após perder sua casa, seu trabalho e dezenas de conhecidos no conflito armado que assola o país árabe desde 2011.
O sírio chegou ao Brasil em fevereiro de 2014 e, no mesmo ano, começou a fazer parte da organização não governamental África do Coração, fundada por Katumba, que deixou a República Democrática do Congo um ano antes, durante perseguições decorrentes de seu ativismo político. E foi na ong que a Copa dos Refugiados deixou de ser uma simples ideia para se tornar um projeto real.
“Como a Copa do Mundo de 2014 foi aqui no Brasil, resolvemos lutar para que algo chamasse a atenção da imprensa para os refugiados. Escolhemos o futebol pois ele tem uma linguagem universal. Não importa se você está na Síria, no Iraque ou no Brasil, todo mundo entende a língua do futebol. O Brasil é um país que recebe muitos refugiados e imigrantes e, ainda assim, há muita xenofobia aqui. Por isso, não é somente jogo pelo jogo, queremos quebrar a xenofobia, o preconceito, a ignorância”, declarou o refugiado.
Além da Copa dos Refugiados, a África do Coração promove, também, a Copa Integração, na qual mulheres e homens jogam no mesmo time. “Nossa cultura é machista e queremos quebrar isso. Mulheres também sabem fazer gol. A diferença é que, quando uma mulher faz um gol [na Copa Integração], ele vale por dois. Os gols feitos por homens valem só um, mesmo (risos)”.
Abdo comenta, também, acerca das dificuldades de realização de ambas as copas. “Não foi fácil reunir os refugiados e imigrantes. Alguns deles são profissionais em seus países de origem e buscam continuar a carreira quando precisam migrar para o Brasil. Outros nunca jogaram futebol antes. É difícil, mas felizmente estamos na 4ª edição e a cada ano só melhora”, finaliza.
África do Coração
Fundada em 2013 pelo congolês Jean Katumba, a ong África do Coração, de acordo com Abdo Jarour, é “diferente de todas as ongs, porque foi feita para refugiados, com refugiados, dos refugiados”. Além de promover ambas as copas para pessoas em situação de refúgio e imigrantes, a África do Coração auxilia, também, na obtenção de documentos brasileiros, na distribuição de cesta básica, doação de roupas, realização de palestras, entre outras atividades.
Atualmente, a ONG está sediada no centro da cidade de São Paulo e atende, em média, 300 refugiados e imigrantes por mês.
Bianca Ribeiro, São Paulo