A violência contra a mulher é entendida como violência doméstica e familiar em todas as suas formas, incluindo os homicídios e a violência sexual. No Brasil ocorrem, a cada dois minutos, cinco espancamentos. A cada 90 minutos, um feminicídio; por dia, 179 relatos de agressões. Em 10 anos, 43 mil mulheres foram assassinadas, sendo 41% na própria casa.
Em 2015, foram registrados 45.460 casos de estupros consumados no Brasil, o que corresponde a 22,2 casos a cada 100 mil habitantes. Considerando apenas os boletins de ocorrência registrados, em 2015, ocorreu um estupro a cada 11 minutos no Brasil, ou seja, cinco por hora.
O país ocupa a quinta posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking com 83 países. Em 2013, foram assassinadas 4.762 mulheres, ou 13 homicídios femininos por dia, ou ainda uma mulher morta a cada duas horas. Além disso, o feminicídio de negras aumentou 54% na última década. A rede de apoio para as mulheres saírem dessa situação, no entanto, ainda é muito pequena.
Atualmente nosso país dispõe de apenas 13 Núcleos Especializados de Atendimento à Mulher, localizados nos Estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe e no Distrito Federal. Em todos os casos, os núcleos estão localizados nas capitais e têm competência para atuar apenas nessas circunscrições. Além dos núcleos, o relatório apontou a existência de 24 núcleos/defensorias especializadas no atendimento à mulher atuando nas varas/juizados de violência doméstica e familiar1.
Os dados acima e a própria realidade de milhares de mulheres demonstram a necessidade de existir uma rede nacional ampliada que trabalhe em conjunto os poderes Judiciário e Executivo e que concretize, de fato, a elaboração de políticas públicas para a erradicação da violência contra as mulheres em nosso país.
Depois de muitas mortes e de muita mobilização por parte das mulheres, foi aprovada no Brasil, em 2006, a Lei 11.340 (Lei Maria da Penha), que visa a julgar e punir crimes contra as mulheres. Em março de 2015, foi sancionada a Lei do Feminicídio (n° 13.104/2015), cuja pena prevista é de reclusão de 12 a 30 anos.
As leis aprovadas foram um avanço do movimento de mulheres no país, mas falta ainda toda uma rede do próprio Estado para proteger as mulheres contra seus agressores. A luta por um mundo sem violência contra mulheres está no centro da atuação do movimento de mulheres nesses últimos anos. O Movimento de Mulheres Olga Benario compreende que a luta pela vida das mulheres é parte indivisível da luta por uma sociedade sem opressão e exploração.
Casa Tina Martins
Diante dessa realidade cruel para as mulheres, um grande exemplo de como desenvolver a luta aconteceu em Belo Horizonte (MG), no dia 8 de março de 2016. O Movimento de Mulheres Olga Benario, junto com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), ocupou um prédio público abandonado há mais de 10 anos, exigindo a efetiva aplicação de políticas públicas.
As principais reivindicações eram: por um intenso combate à violência machista e do Estado; abertura imediata de creches em tempo integral; regularização das creches comunitárias, mantendo sua autonomia; casas-abrigos para atendimento às mulheres vítimas de violência; delegacias 24 horas para atendimento especializado; início imediato da construção da Casa da Mulher Brasileira, visto que o terreno existe há mais de quatro anos e está sendo apropriado indevidamente.
A ocupação foi uma grande vitória, obrigando o Governo do Estado de Minas Gerais a ceder um imóvel que estava ocioso para que fosse criada a Casa de Referência da Mulher Tina Martins, que se transformou num espaço para formação das mulheres e formulação de ideias e políticas, com debates, palestras, oficinas, cursos, rodas de conversas, feiras e encontros, além de realizar acolhimento temporário às mulheres que têm esse atendimento negado pelo Estado.
Esta luta mostrou que as mulheres só irão conquistar mais políticas públicas na marra e com auto-organização. A Casa vem desenvolvendo, com outras entidades parceiras, atendimento às mulheres refugiadas, vítimas do preconceito e discriminação. Importante ressaltar que, nesse período de quase dois anos, a maioria esmagadora das mulheres atendidas foi de mulheres pobres, trabalhadoras e de periferia; exatamente porque são essas as mulheres privadas do acesso às informações e ao atendimento especializado.
Foram centenas de atendimentos a mulheres em situação de vulnerabilidade, contando com a participação de voluntárias para atendimento psicológico e jurídico. Por enquanto, todo o trabalho da casa é feito de forma voluntária por mulheres do movimento ou pelas próprias abrigadas, assim como todos os móveis e mantimentos usados ali são frutos de doação. Depois dessa primeira experiência, ocorreram mais duas ocupações de mulheres organizadas pelo movimento Olga Benario: Ocupação Mulheres Mirabal (RS) e a Ocupação Helenira Preta (SP).
Mulheres Mirabal
Outro exemplo dessa luta ocorreu no dia 25 de novembro de 2016, em Porto Alegre (RS), com o surgimento da Ocupação Mulheres Mirabal. Foi ocupado um prédio abandonado com a organização de 100 mulheres de diversas idades e profissões. A partir da ocupação do imóvel, o Movimento Olga Benario passou a divulgar o trabalho nas redes sociais e nas ruas. Em poucos dias, o trabalho desenvolvido voluntariamente por psicólogas, assistentes sociais, advogadas e profissionais da área da saúde passou a ser reconhecido por entidades sociais e pelo próprio poder público.
A ocupação tem regras de convivência estabelecidas, como horários de entrada e saída do prédio e a intenção de dar a primeira acolhida às mulheres que precisam de ajuda para se livrarem do agressor. Das mulheres vítimas de violência doméstica e de gênero que vieram em busca de acolhimento na casa, a grande maioria eram negras com mais de 25 anos. O acolhimento no local ainda é transitório. Há mulheres que ficam ali por vários dias, por um dia ou mesmo um turno.
Quem procura acolhimento na Mirabal deve preencher uma ficha de entrada e, se necessário, ser encaminhada a atendimento médico e psicológico. A ocupação, que tem 60 vagas, conta com uma rede própria de assistentes sociais, profissionais de saúde, psicólogas, professoras e educadoras sociais para auxiliar na atenção. Quem quiser levar pertences pessoais, filhos ou cachorros para a casa, coisas que costumam ser “confiscadas” em instituições municipais, ali é bem-vinda.
“Cheguei na Mirabal desesperada. Meu agressor foi à casa da minha família três dias antes de eu procurar abrigo. Ele chegou logo com olhar intimidador para mim, se aproximou e me pegou com força para me levar pra casa. Colocou minha filha no carro, mas eu tive forças para retirá-la de lá. Vivi sete anos de violência quase todos os dias, eu não aguentava mais. A Mirabal me salvou. Estou há 4 meses na casa e sou outra mulher. Hoje eu brigo, vou à luta, porque aprendi com as companheiras que ninguém deve viver com violência, e que sou capaz de lutar pela minha vida e de minha filha”, afirmou Tânia Ferreira, acolhida na Casa Mirabal.
A própria ocupação retira uma parte do sustento de produtos feitos pelas ocupantes, além de doações feitas por apoiadores. Pães caseiros, bolos, sabonetes artesanais vendidos em feiras e brechós com roupas doadas são algumas das maneiras de angariar fundos para a manutenção da casa. As mulheres da ocupação criaram duas redes a partir dela: uma, de acolhimento, com profissionais voltados ao atendimento de quem busca abrigo; e outra, de apoiadores, pessoas que chegam ali com ideias para atividades e doações.
Ocupação Helenira Preta
A terceira ocupação ocorreu no dia 25 de julho deste ano, Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, quando dezenas de mulheres organizadas pelo Movimento de Mulheres Olga Benario ocuparam uma casa abandonada no centro de Mauá, região do grande ABC paulista. O objetivo da ocupação foi exigir do Governo do Estado de São Paulo e da Prefeitura a reforma do imóvel, de propriedade da gestão municipal, e sua transformação em uma casa de referência para acolher mulheres vítimas de violência doméstica.
É necessário que as mulheres se unam e se organizem para lutar pela ampliação de delegacias especiais para as mulheres, aumento de casas-abrigo, mais profissionais qualificados, além da humanização no atendimento às vítimas de violência.
A violência contra as mulheres é algo estrutural, ou seja, ocorre devido à organização social em que a humanidade se encontra. Enquanto existir a propriedade privada dos meios de produção – não só do ponto de vista econômico, mas cultural, pois a sociedade de classes educa os “homens” a verem as mulheres como se fossem a sua propriedade privada, sua posse, e, portanto, devido a esta construção social, podem até matá-las em nome dessa “propriedade” –; enquanto existir uma sociedade dividida em classes sociais, que trata as mulheres como coisas, posse ou objeto, a morte delas será apenas consequência e, por isso, continuaremos a ocupar, resistir e lutar pela vida das mulheres.
¹Dados do Relatório do ARTIGO 19 BRASIL – Defendendo a Liberdade de Expressão e Informação (www.artigo19.org).
Claudiane Lopes e Indira Xavier, da Coordenação Nacional do Movimento de Mulheres Olga Benario