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sábado, 23 de novembro de 2024

Feliz ano novo

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Você já reparou? Não olhamos mais nos olhos uns dos outros quando nos falamos. Já notou que o celular não deixa mais a gente conversar com o vizinho do lado, com o nosso cachorrinho, com aquela criança que passa todos os dias em nossa calçada? Hoje eu fiquei entalado no metrô enquanto tentava ajudar uma senhora a subir com as suas compras pra casa. Antes disso me levaram a carteira e o celular. Na estação, com pressa pra entrar no vagão já lotado, empurraram a senhora no chão. O nome dela era Janaína. Dona Janaina. Tinha oitenta e cinco anos. Perguntei, na tentativa de ajudar. Me tomaram o livro e um caderno, quando pus a bolsa no chão pra ajudar dona Janaína. Não me olharam nos olhos, não me pediram desculpas, não me disseram para ter calma ou ambição.

– “uma esmola, pelo amor de deus!”

Diz aquele homem que tá ali todo dia, na encruzilhada dos bancos: bradesco, santander, caixa e do brasil. E ele no meio. Nem num banco de praça ele pode sentar. Não deixam.

– “polícia não deixa nunca!”

Você já olhou hoje pro céu? Reparou que ele ainda é azul da cor do mar, apesar da descrença e do cinza que insiste em nos machucar? Apesar da descrença? Já faz um tempo que a internet não nos deixa ver a chuva, sair na chuva, andar na chuva, correr na chuva, sentir a luz do dia, os pássaros brincando no braço do banco, aquele casal se beijando, derrubando muros, antes de chegar por aqui o tal do WhatsApp. Roubaram-me o celular. Vê que chique: “roubaram-me o celular”. Agora, não mais completarei a missão que nasci para fazer no mundo: ligar pra todo mundo, contar uma piada, fazer alguém sorrir por isso. Você sorriu?

Roubaram meu celular e isso me fez abrir os olhos. Abri os olhos pro mundo. E ele não é tão cinza ou frio, como diz o facebook. Aquele casal que comia junto, na mesma mesa, agora curte status um do outro, transam com seus Celulares, Smartphones e iphones em cada par de mãos que já não se veem, não se tocam num carinho antigo, enquanto esperavam o busão lotado pro trabalho de quem quer que fosse. Que importava a hora ou dia? Hoje tudo é tão vago.

As crianças jogam eufóricas nos sofás de suas casas. Já não mais se sujam, já não caem no chão nem se arranham da cabeça aos pés, as mãos e os joelhos. Cair, pelo menos três vezes, andando de bicicleta? Fora de cogitação. Os adolescentes sabem de tudo. Acham-se tão cheios de si, tão cheios de toda a informação, que já não falam coisa com coisa. Falam tanto. Nada dizem. E seguem reproduzindo estranhos discursos distantes de reflexão. Colecionam abusos, manias, depressões.

Antes disso um carro bateu num senhor de seus 50 anos. Na frente de sua porta. Ambos, passageiro e motorista, ouviam áudios e viam vídeos em seus aplicativos de sexo fácil e falsas ilusões. Eu já não digo mais nada. Não sei o que dizer. Faltam-me palavras. Apenas alimento e espero o milagre de poder ver outros olhando em outros olhos, com outros olhos. Quase não digo mais nada. Só espero o milagre de olhar nos olhos, pegar um livro, escrever de próprio punho, rir um pouco de nós mesmos e de nossas histórias do cotidiano, perder-se em nossa própria falta de geografia, poética e lírica. Rir por não entender, muitas vezes, nossa própria caligrafia. Aquelas cartas que não se sabe pra onde foram. Sabia que ainda há pessoas que mandam cartas? Ainda há também quem amanheça seu dia pedindo esmola, de domingo a domingo. De sol a sol.

Perdi o celular e deixei de dormir mais tarde. Tornei a reparar nos cheiros e nos beijos, nos becos e nos jeitos, nos olhares que os amantes, hoje cada vez mais raros, ainda dão. Não se assiste mais um show. Presta-se mais atenção ao celular, a “selfie”, do que a música. Perdi o celular e descobri outros caminhos de volta pra casa, os livros da Carolina de Jesus, as rosas do povo, os sentimentos do mundo, as viagens, as análises, as interpretações. Você já parou pra reparar que as pessoas já não se olham mais nos olhos? Já reparou como a miséria do mundo parece já não mais nos incomodar, apenas e somente nas redes sociais? A pobreza de sempre, a miséria da alma.

Perdi o celular e retomei a vida. Tornei a respirar. Sentir minhas mãos. Ver cair, mansamente, a chuva. Perdi o celular e pintei minha casa, lavei a roupa suja em mim e na minha casa. Ouvi meus discos. Visitei amigos. Cortei meu cabelo. Cuidei de mim.

Cloves Silva, estudante de Letras da UFRPE

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