A luta por uma sociedade melhor passa, indubitavelmente, por questões educacionais. A educação que encaminha o homem para a construção de uma realidade possível e diferente da atual deve ser distinta da educação que nos é entregue. Não faltam argumentos para isso.
Porém, o que vemos diariamente não é um esforço do Estado para suprir essas deficiências da educação pública, muito pelo contrário. Uma escola, no mínimo democrática, se torna cada vez mais distante, e a escola ideal passa além dela.
Diante da falta de Estado, duas possibilidades surgem: a mercantilização e a organização popular. Um espaço que o Estado criou, mas não tomou, foi o dos vestibulares e processos seletivos. No Espírito Santo, dois merecem destaque: a prova da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que hoje não existe, mas se faz no Enem; e a prova do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES).
No âmbito dessas duas provas históricas, houve três respostas: o surgimento dos cursinhos particulares, caros, mercantilizados; a resposta do Estado nos cursinhos alternativos, ligados às escolas e à Secretaria de Educação; e a resposta do povo pelos cursinhos populares.
No Espírito Santo existem numerosos exemplos desses cursinhos, com diferentes campos de ação e táticas, mas um objetivo em comum: acima de aprovar, criar um espaço de confronto com a realidade. Trago aqui dois desses cursinhos em específico: a Associação Atitude, que conta com pré-Enem e pré-IFES, e o pré-IFES Vitória.
O Atitude nasceu em 2002, de uma ideia de alunos que queriam entrar na UFES, mas não podiam pagar um cursinho particular. Mobilizados em torno da Juventude Católica, se organizaram, captaram professores e conseguiram espaço para a realização das aulas. Com o passar dos anos, o Atitude cresceu e ganhou novas proporções. Atualmente, conta com uma equipe de mais de 80 voluntários e atende em torno de 400 alunos em turmas extensivas no noturno e intensivas aos sábados. Para se manter sem ajuda financeira externa, o projeto pede aos alunos uma contribuição solidária simbólica, num valor bem baixo, para pagar as passagens de professores que moram longe do projeto, comprar material, entre outros. Desde 2016, o Atitude oferece vagas para pré-IFES, aos sábados, destinado a alunos de ensino fundamental.
De membros do Atitude nasce o pré-Ifes Vitória. Destinado a alunos de uma escola específica de uma comunidade de Vitória, hoje está em expansão atendendo quatro escolas. Totalmente gratuito aos alunos, com um viés popular ainda mais arraigado, vem se ligando a projetos de movimentos incipientes, como um coletivo de cursinhos populares sonhado por alguns professores, uma parceria com o próprio IFES, e uma rede colaborativa entre as escolas atendidas.
A sala de aula e suas extensões
Professores voluntários comprometidos em criar um espaço de confronto com a realidade. Essa é a equipe dos cursinhos populares. E esse compromisso claramente não pode ser restrito à sala de aula. Tem que caminhar dentro da escola, pelos corredores, pelo pátio, pela sala de professores e pela coordenação.
A aula tem que provocar o questionamento da realidade, tem que despertar o senso crítico e científico, saindo do senso comum. A aula de História do Brasil tem que apresentar nosso País como um país que, desde sua construção, faz parte de um projeto burguês internacional. As aulas de Física precisam falar da produção de Ciência, suas nuances sociais e sua situação atual, especialmente no Brasil. As aulas de Biologia precisam abordar o meio ambiente, nossa relação e nossos impactos, além da saúde de cada um de nós. Não basta preparar para a prova, é preciso ir além.
No caminho pelo resto da escola, o compromisso alcança os diálogos entre professores e alunos nos corredores: sobre a disciplina, sobre a carreira profissional, sobre a vida. Precisa alcançar a hora do intervalo, o lanche partilhado. Precisa chegar à sala dos professores e coordenadores, sempre de portas abertas, com interação entre todas as áreas.
Mas não basta. O compromisso extrapola os portões da escola. Alcança as ruas da cidade, interagindo e aprendendo com elas. Sai da cidade, do estado. Viaja para outros lugares, adquire novas experiências. O compromisso com essa nova realidade não tem limites.
Os alunos abraçam esse compromisso. Saem como alunos, voltam como voluntários. Criam em seus cursos, universitários ou técnicos, ambientes para experiências similares. Fomentam esse sonho da nova realidade e a necessidade de lutar por ela.
Trabalho e formação docente
Nem todos os nossos voluntários são profissionais da educação. Engenheiros, advogados, enfermeiros. Todos são bem-vindos, desde que comprometidos. As capacidades técnicas podem ser desenvolvidas em conjunto. E mesmo os profissionais de educação não estão completos. E nisso esses projetos servem como espaço de formação de uma práxis docente muito mais libertadora. Aliando teoria e prática, sem pressões salariais, de condições de trabalho ou compromisso com subsistência do profissional. A liberdade do professor se faz em liberdade da aula e do aluno.
A formação de professores, e mesmo profissionais diversos, que enxergam a educação como prática da liberdade, é uma tarefa fundamental dos cursinhos populares. Há a troca de experiências, a liberdade profissional, a motivação pessoal e não material. Sonhos pessoais se transformam em práticas diferenciadas em sala de aula (e fora dela, como já disse). Professores com dificuldades específicas são bem-vindos, desde que comprometidos a melhorarem, e terão ajuda para isso. Há espaço para debate, diálogo. Todos podem e devem contribuir uns com os outros.
O trabalho docente extrapola a instrução tradicional, dos conteúdos. Deixa, progressivamente, de ser alienado. Professor e aluno se reconhecem um no outro. Professores entre si também. Passa-se a enxergar o trabalho do professor como parte de uma estrutura maior. Enxergar-se nessa estrutura é enxergar algo do lado de fora dela. E tentar sair.
Vestibular como realidade a ser confrontada
Todos os dizeres acima podem ser aplicados à escola popular de qualquer natureza. Mas os cursinhos populares têm uma realidade a mais para enfrentar: o vestibular. São especificamente voltados para isso. Por mais que a aprovação não seja o único objetivo, e talvez nem o maior, é o motivador central. Cada aprovação é um sinal de implosão e tomada do sistema.
É, sim, possível pensar para além dessa categoria. Enfrentá-la com as armas que ela nos dá é um primeiro passo. Mas de forma paralela a isso não podemos esquecer de lutar pelo fim de processos seletivos excludentes, pela qualidade da educação pública básica, por sua democratização, pela reforma total de todos os sistemas de ensino.
A luta pela transformação da realidade é perene. Mas enquanto tal transformação não se concretiza, ações que permitam criar espaços e tempos de confronto, tempos e espaços de liberdade, esperança e sonho, são necessários. E os cursinhos populares têm esse papel.
Carlos Fehlberg, coordenador dos pré-IFES Atitude e Vitória, professor do pré-Enem Atitude