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sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

A classe média na mira das classes dominantes

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Diante da difusão das imagens da coreografia pró-Bolsonaro em Fortaleza e da formação de grupos políticos liderados por setores médios da sociedade – a exemplo do Instituto Democracia e Ética (IDE) –, resolvi elaborar uma breve exposição dos interesses por trás do aparecimento gradual de tais organizações e sublinhar que suas origens e pautas principais (como o combate à corrupção) estão intimamente relacionadas a questões muito mais sórdidas do que podemos imaginar.

A cobiça das classes dominantes sobre os setores médios da sociedade está longe de ser uma obra da atualidade. A conquista da classe média era parte fundamental do pacote da chamada elite orgânica do capital multinacional e associado que coordenou o golpe de 1964.

É importante recordar alguns nomes e objetivos pérfidos dos que observaram singularmente a importância da classe média para a obstrução do avanço do bloco nacional-trabalhista capitaneado por Jango. O engenheiro civil Arlindo Lopes Côrrea, zeloso obreiro da Consultec e partícipe do sinistro complexo Ipes/Ibad (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática), foi um dos que primeiro intuíram acerca da necessidade premente de atrair para o bloco golpista as classes médias.

Munido por um position paper, Arlindo Côrrea assinalou os objetivos da elite orgânica do capital naquilo que foi chamado de “Conquista das Classes Médias para a Ação em Grupo”.
No geral, Arlindo Lopes notava que a classe média se empobrecia e sentia o valor real da sua renda declinando. Diante disso, o agente do Ipes concluiu, dentre outros pontos, a facilidade de “comprovar” os motivos da deterioração do status daquela classe mediante um esquema de comparação das rendas de segmentos das classes médias com as rendas de determinados grupos de trabalhadores, como os da Marinha Mercante, Portos e Rede Ferroviária – então considerados membros privilegiados das classes trabalhadoras, assim como “agitadores”. Para tanto, era salutar, assim sendo, organizar as classes médias enquanto uma “classe” independente e requerente de pautas-comum.

Por fim, Arlindo notou a facilidade em provar para as classes médias que os motivos do seu empobrecimento estavam diretamente relacionados à transformação do Brasil numa “República Sindicalista”.

Numas poucas palavras, esse pensamento se resumia na ideia de estimular às classes médias ao combate dos fatores do seu “empobrecimento”: a inflação, a desvalorização do seu salário e a corrupção… no setor público. Todos os fatores mencionados seriam correlacionados pela propaganda insidiosa do Ipes ao “avanço da ‘esquerdização’ no Brasil” – estimuladora das terríveis greves responsáveis pela inflação e dos privilégios de setores ligados ao bloco nacional-trabalhista. Desse modo, aproximava-se o momento de unir as classes médias, em torno de um programa comum, dirimindo a distensão da consciência individualizada de cada um de seus membros.

Uma síntese profícua da intuição de Arlindo pode ser revelada numa de suas percepções mais luminosas. Segundo ele, diferente do que os políticos tradicionais achavam, argumentações emocionais com leves disfarces de racionalidade são altamente penetráveis no ideário das classes médias.

Organizadas as ideias de Arlindo Côrrea, outras peças-chaves do Ipes/Ibad, como Glycon de Paiva, vice-presidente do Ipes, e o prócer Golbery do Couto e Silva, foram aglutinando mulheres de classe média alta ligadas, em sua maioria, a setores reacionários da Igreja Católica. Eles perceberam a relevância daquelas no processo de desestabilização política. A finalidade era propalar “aos quatro ventos” os valores a serem defendidos pela “mulher cristã”, como o conservadorismo e o pavor à leniência do governo Jango diante do “avanço” do comunismo na sociedade brasileira.

Grupos como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) e a União Cívica Feminina (UCF) foram formados. Recebiam ampla cobertura da grande imprensa, que divulgava parte dos seus materiais de “combate à subversão”. A título de exemplo, a primeira reunião da Camde foi realizada no auditório de O Globo (ele mesmo!).

Ademais, as atividades da elite orgânica do bloco de oposição a Jango eram gratificadas com montanhas de recursos financeiros doados por grandes corporações (nacionais e estrangeiras) interessadas na propagação maximizada da oposição ao campo progressista.
O êxito dos intentos se traduziu nas famosas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Resultado: o governo Jango agonizava. O bloco de poder do capital multinacional e associado costurava o seu assalto ao poder. O desfecho se deu com o abatimento das reformas de base e com a emergência da modernização conservadora/autoritária pleiteada pelos conspiradores.
Qualquer semelhança com as organizações mediadas por setores da classe média nos dias de hoje não é mera coincidência.

A História pode não se repetir, mas a reiteração de gestos é sim uma realidade sombria que aparece quando a amnésia de uma sociedade paralisa a necessária rememoração de seus traumas.

Osnar Gomes é doutorando em História pela UFPE

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