Eu nasci no bairro de Bebedouro e morei lá até os cinco anos de idade, numa casinha de aluguel, que tinha vão único. Meus pais, trabalhadores rurais do corte da cana, vieram para a capital fugindo da pobreza do interior, provocada pelo êxodo rural. Praticamente não estudaram. Minha mãe nasceu em União dos Palmares e meu pai de Colônia Leopoldina. Antes de casar, minha mãe era empregada doméstica, já meu pai trabalhava na Ceasa, numa profissão muito peculiar e de pouco rendimento, contador de bananas.
Quando saímos de Bebedouro, fomos morar no Conjunto Rosane Collor, construído em 1992, localizado no bairro do Clima Bom. Apesar do nome, que é uma homenagem à esposa de Collor (ele era presidente do país na época), esse Conjunto habitacional foi uma conquista da luta de trabalhadores sem teto, que ocuparam um terreno e passaram a exigir moradia. A imensa maioria dessas famílias, assim como a minha, era formada por negros, trabalhadores rurais, vindos do interior de Alagoas. Lembro do sufoco das pessoas que não tinham sequer o dinheiro do aluguel e viviam o cotidiano de morar numa barraca de lona.
Para se ter uma ideia do abandono social e do sofrimento, as casas, que eram de vão único (a separação da minha cama e a dos meus pais era feita por um guarda-roupas), conjugadas e construídas com placa de concreto no lugar de tijolos (fazia um calor infernal durante o dia), foram entregues sem água e energia elétrica. Moramos meses assim. Pela manhã, o caminhão-pipa vinha distribuir água, com filas quilométricas de mães de família brigando para garantir um balde. À noite, a escuridão tomava conta do Conjunto e o jantar era à luz de velas, mas não por romantismo.
Exatamente ao lado do conjunto Rosane Collor, que era a expressão da pobreza, logo se formou uma favela que existe até hoje, composta por pessoas ainda mais pobres, que não tinham sequer as casas conjugadas, de placa de concreto. Essas pessoas não tinham comida, não tinham nada, era a pobreza da pobreza. Nem precisa eu dizer que era uma população negra, vinda do interior, no processo de êxodo rural.
Em 1996, finalmente foi construída a primeira escola do Clima Bom, denominada Zumbi dos Palmares. O prefeito era Ronaldo Lessa e a então secretária de Educação, a professora Maria José Viana. A Prefeitura queria implementar uma escola-modelo. O lugar escolhido para a escola foi justamente o Conjunto Rosane Collor. Para minha mãe foi motivo de alegria e alívio. Fui logo matriculado lá. Antes, eu estudava na Escola Ovídio Edgar e depois na Escola Dom Antônio Brandão, ambas localizadas no bairro do Tabuleiro dos Martins. Eram escolas distantes da minha casa. Para chegar, gastavam-se cerca de 30 minutos caminhando. Como eu era criança, minha mãe, que sempre foi coruja, me levava e me buscava todos os dias. Uma penitência que exigia dela duas horas de caminhada por dia. Ela não teve a oportunidade de estudar, mas fez um enorme sacrifício para garantir que eu tivesse essa oportunidade.
Quando comecei a estudar na Escola Zumbi dos Palmares, eu tinha 10 anos e estava na quarta série. Estudei lá até os 14 anos, quando concluí o ensino fundamental. Ter estudado na Escola Zumbi dos Palmares foi um dos aspectos mais determinantes para a formação da minha consciência. Pela primeira vez eu ouvi falar em Acotirene, Ganga Zumba, Zumbi e Dandara. Pela primeira vez, apenas aos 10 anos de idade, eu descobri que tinha existido escravidão no Brasil.
Antes mesmo do Dia da Consciência Negra se tornar oficial, a Escola Zumbi dos Palmares realizava, todos os anos, eventos no dia 20 de novembro, dia em que Zumbi foi assassinado pela Coroa portuguesa e seus soldados mercenários. Eram palestras, apresentações artísticas referentes à cultura africana e exibição de filmes.
Quando completei 12 anos, passei a trabalhar com meu pai na Ceasa. Eu descarregava os caminhões de bananas. Chegava ao trabalho de madrugada, por volta das 3 horas da manhã, mas largava antes do meio dia, conseguia garantir o horário da escola. Todos os trabalhadores que descarregavam os caminhões eram negros, grande parte dos demais trabalhadores também.
Tudo isso foi muito marcante para mim. Eu gostava de chegar na Escola e contemplar a estátua do líder guerrilheiro Zumbi dos Palmares. Saber que ele era exemplo de coragem, de combate às injustiças, era inspirador. Foi lá que eu passei a praticar capoeira, entender os símbolos religiosos e culturais africanos. Foi lá que eu aprendi que nós, negros, não somos inferiores, que a nossa pobreza tinha uma origem e pode ter fim se a gente se unir e enfrentar os exploradores. Até então, apesar de viver na pele os efeitos de uma sociedade racista, em que negros e negras são os mais explorados entre os explorados, os mais pobres entre os pobres, os mais humilhados entre os humilhados, eu não tinha compreensão do significado do racismo. Eu apenas sofria seus efeitos, acreditava que sempre foi assim, que era vontade de Deus, que nunca poderia mudar.
A consciência de classe, o papel do racismo como instrumento ideológico para garantir a superexploração dos negros e negras, o que representou a escravidão no processo de consolidação do capitalismo e enriquecimento das potências imperialistas, a submissão da burguesia brasileira aos estrangeiros e sua vontade de ser europeia, eu só fui entender um pouco depois, quando me tornei comunista. Mas sem todo o aprendizado que eu recebi estudando numa escola com o perfil da Escola Zumbi dos Palmares, o despertar da minha consciência seria possivelmente muito mais difícil. A história dos meus ancestrais, da maior experiência de resistência e liberdade da história do Brasil, até então, havia sido escondida de mim.
Dito isso, eu queria destacar a importância extraordinária do Dia da Consciência Negra na formação de uma consciência antirracista na nossa sociedade, do significado dessa data na vida de tantos jovens que precisam compreender a trajetória do nosso povo e a origem dos graves problemas que enfrentamos.
Algumas pessoas, intelectualmente desonestas, que dormem em casas confortáveis e se alimentam muito bem todos os dias, comprometidas em garantir seus privilégios, atacam essa data, tentam contrapor consciência negra x consciência humana. Ora, a falácia é flagrante! Quando falamos de consciência negra, buscamos exatamente reivindicar a nossa humanidade, que foi e é brutalmente violada por anos de escravidão e capitalismo moderno. Para os senhores de engenho e a burguesia, os negros não passam de animais de carga, apenas uma mercadoria.
Condenar a existência dessa data é escolher o lado dos racistas. É querer empurrar a nossa história para debaixo do tapete, significa esconder as profundas contradições sociais, a brutal miséria a que o povo negro está submetido, garantir a perpetuação do racismo, defender a manutenção do poder econômico, social e político de uma burguesia branca, racista, antinacional, representante dos colonizadores estrangeiros contemporâneos.
A formação econômica do Brasil tornou o capitalismo e o racismo inseparáveis. Para derrotar a burguesia é preciso enfrentar o racismo, para derrotar o racismo é preciso enfrentar a burguesia. Precisamos fazer um acerto de contas com a história do nosso país. A Revolução Brasileira precisa ser, ao mesmo tempo, socialista e antirracista, única condição para eliminar esse mar de lama da colonização que a burguesia brasileira insiste em se banhar.
Magno Francisco é professor de filosofia, militante da Unidade Popular (UP)