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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Saúde não é uma mercadoria

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Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde pública em nosso país era limitada à parte da população que contribuía com o sistema previdenciário, ou seja, pessoas que trabalhavam com carteira assinada e seus familiares diretos. Os desempregados eram considerados indigentes, ficando na dependência do atendimento de caridade das Santas Casas de Saúde.

Após o final da ditadura militar, uma grande mobilização popular garantiu que a Constituinte que estabeleceu a Constituição Federal de 1988 criasse um novo modelo de saúde: universal, público e gratuito. Porém, as forças políticas progressistas não conseguiram barrar a manutenção da iniciativa privada, que entrou na Constituição como “saúde suplementar” para cobrir as lacunas não cobertas pelo SUS.

De lá para cá, o que observamos é a iniciativa privada ganhando cada vez mais espaço, principalmente graças à presença marcante de empresários da saúde no Congresso Nacional, seja através dos planos e seguros de saúde que crescem graças ao sucateamento do SUS, seja através da contratação, pelo próprio governo, dos serviços privados (terceirização de procedimentos/internações), ou ainda pelas Organizações Sociais (a iniciativa privada gerenciando as unidades de saúde do SUS).

Como exemplo do crescimento da saúde privada no Brasil, hoje, dos cerca de seis mil hospitais existentes no país, 4.400 são privados. Mas, apesar da falta de verbas e de toda a propaganda negativa que se insiste em fazer, o SUS ainda é responsável pela maior parte dos atendimentos hospitalares: são 300.270 leitos em unidades públicas contra 135.481 da rede privada. Também alguns dos procedimentos mais onerosos, mas de fundamental importância, ainda são exclusivos do SUS, como o transplante de órgãos e o tratamento de pacientes HIV positivos.

Um dos principais avanços do SUS, além da universalidade – isto é, garantir o atendimento a todos as pessoas, pobres ou ricas –, foi a introdução da medicina preventiva e da promoção à saúde. Antes, o modelo de saúde era centrado na cura de doenças (modelo hospitalocêntrico); então passou a ser dada maior ênfase na promoção à saúde, principalmente com a criação das Unidades Básicas de Saúde ou Postos de Saúde da Família.

Mas não há como evitar o aparecimento de doenças numa comunidade sem saneamento básico e com famílias sem acesso a uma alimentação saudável. Apesar disso, várias doenças foram controladas e até erradicadas nos últimos anos e a expectativa de vida aumentou mesmo nas áreas mais carentes.

Sucateamento e corte de verbas

Para piorar o quadro, nos últimos anos, vários cortes foram anunciados nos recursos já escassos do SUS. Um deles foi a Emenda Constitucional 95, a famosa “PEC da Morte”, aprovada em 2016 e que congela por 20 anos os investimentos na saúde e educação públicas.

Segundo dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), no ano passado, o governo federal investiu R$ 567,17 por habitante durante todo o ano, o que equivale a R$ 1,55 por dia por habitante. Quando somado com o investimento dos estados – que varia entre R$ 548,19, em Pernambuco, e R$ 338,56, em Minas Gerais – a média de gastos com saúde por habitante por dia é de R$ 2,76. Em 2013, esse gasto médio foi de R$ 3,05, demonstrando a queda no investimento público com a saúde dos últimos anos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, a Inglaterra gasta US$ 8,30 por habitante por dia; a França, US$ 10,44; o Canadá, US$ 10,90; e a Espanha, US$ 5,95.

Devido ao baixo investimento na saúde, algumas doenças que haviam sido erradicadas voltaram a ocupar lugar nos noticiários neste ano. O sarampo foi uma delas, reaparecendo em surtos no Amazonas, Roraima, Rio Grande do Sul, Rondônia e Rio de Janeiro após ter sido considerada erradicada em 2016 pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). A causa foi a baixa cobertura vacinal nos últimos anos, de acordo com o próprio Ministério da Saúde. Dados do governo federal mostram que 312 municípios brasileiros estão com cobertura vacinal contra a pólio abaixo de 50%. Outras doenças que ameaçam retornar pela baixa cobertura vacinal são poliomielite, rubéola e difteria.

Poucos médicos e menos leitos

Nos últimos sete anos, o número de médicos no Brasil cresceu 23%. Porém, a desigualdade na distribuição dos profissionais ainda é grande, devido à concentração dos profissionais em algumas regiões. Enquanto no Distrito Federal são 4,35 médicos por cada mil habitantes, o número chega a apenas 0,87 no Maranhão; em cidades com menos de cinco mil moradores, a razão é de apenas 0,3 profissionais, taxa semelhante a países africanos.

A média nacional é de 2,18 médicos a cada mil habitantes, deixando nosso país em 68º no ranking de médicos per capita do mundo. Países como Grécia, Itália, Rússia, Bélgica, Uruguai, Armênia e Áustria estão à frente do Brasil. Em primeiro lugar está Cuba, com 5,91 médicos a cada mil habitantes.

Nos hospitais: fila de espera

Também a quantidade de leitos, que já não era suficiente para atender a toda a população, foi reduzida. Nos últimos oitos anos (2010-2018), o Brasil perdeu 34 mil leitos hospitalares em unidades do SUS, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do Ministério da Saúde. Para o médico Carlos Vital, “a redução de leitos significa a diminuição de acesso a 150 milhões de brasileiros que recorrem ao SUS para a atenção à saúde” (Agência Brasil, 12/07/18).

Em dezembro de 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou uma pesquisa com base na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), que apontou que mais de 904 mil pessoas aguardavam por uma cirurgia eletiva no SUS, contando apenas as dez capitais que participaram da pesquisa do Conselho. Ficaram de fora dessa pesquisa os estados do Acre, Amapá, Piauí, Rio de Janeiro, Sergipe, Espírito Santo, Mato Grosso, Amazonas, Distrito Federal, Roraima e Santa Catarina, indicando que o número real de pacientes na fila é bem maior do que o divulgado.

Segundo os dados divulgados, as cirurgias mais procuradas – e, portanto, que mais demoram – são a de vesícula (cuja espera em média é de seis meses), ortopédica e oftalmológica. A cirurgia bariátrica pode demorar até quatro anos para ser realizada pelo SUS.

Apesar dessas cirurgias não serem consideradas de urgência, ou seja, que põem em risco a vida do paciente, a longa espera (que chega a 10 anos, em alguns casos) acaba agravando o quadro de saúde do paciente, podendo levá-lo à morte. Em 2016, foram confirmadas 60 mortes de pessoas que estavam na fila de espera da cirurgia.

A situação é tão complicada que, em 2016, uma sugestão da ONG Instituto Oncoguia foi transformada em Projeto de Lei que tramita no Senado. Com o objetivo de acelerar o atendimento, o PL propõe que o SUS seja obrigado a divulgar na internet, por telefone ou presencialmente, informações sobre a fila de espera para cirurgias.

Além de melhorar os recursos para a saúde pública, a grande saída é investir na prevenção de doenças. Como diria o velho ditado, prevenir é melhor que remediar. E também mais barato. O grande êxito de Cuba e sua medicina é a atenção básica, o saneamento nas ruas e casas e acesso à alimentação de qualidade. Foi assim que a pequena ilha, apesar de todo o bloqueio econômico sofrido desde a Revolução, em 1959, conseguiu acabar com a mortalidade infantil e atingir os melhores índices de saúde do mundo.

Entender a saúde como direito da população e obrigação do Estado, e não como mercadoria, é uma conquista que só será possível de forma plena com o fim da propriedade privada e uma justa divisão das riquezas entre os povos.

Ludmila Outtes é presidente do Sindicato dos Enfermeiros de Pernambuco (SEEPE)

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