No dia 25 de janeiro, mais uma página trágica da mineração em Minas Gerais foi escrita com o sangue de centenas de pessoa, após o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão da mineradora Vale.
Brumadinho, cidade conhecida por ter o maior museu ao ar livre do mundo (Inhotim) foi obrigada pela Vale a entrar para história como cenário de um dos maiores crimes sócio-ambientais em número de vítimas no Brasil e no mundo.
A equipe do jornal A Verdade chegou à cidade na manhã do dia 26. O que vimos foi um verdadeiro cenário de guerra. Corpos sendo encontrados às margens dos rios, em cima da lama e um enorme sofrimento de familiares e amigos que chegavam a todo tempo em busca de notícias sobre seus entes queridos. Muitas informações desencontradas e negativa em prestar esclarecimentos por parte das “autoridades”. Parentes das vítimas que se deslocaram para lá ficaram mais de 24 horas sem informações. A Vale, por seu poder econômico e sua imensa influência junto às “autoridades” públicas, basicamente controla o que é divulgado, apresentado a tragédia como um acidente, e não como um crime cometido pela mineradora Vale.
Desde o primeiro momento, a empresa prestou pouquíssima ou nenhuma assistência às famílias. A nossa equipe, ao acompanhar alguns enterros nos dias posteriores, ouviu de familiares em todos eles uma reclamação quase unânime: “eles (a empresa) não fizeram nada por nós, não prestaram nenhuma assistência, demoraram muito a informar os nomes na lista e restou apenas o sofrimento, estamos desolados”.
No trajeto da lama, centenas de famílias, comunidades ribeirinhas, indígenas, sem teto, agricultores, foram e serão diretamente afetados. Dentre elas está a Aldeia Naõ Xohã, onde 80 indígenas Pataxó Hã-hã-hãe vivem às margens do rio Paraopeba. Este rio, por ser um dos afluentes do Rio São Francisco, ainda corre perigo de ser afetado.
Não foi acidente
O crime da Vale passa por anos de negligência e alterações ilegais no projeto original, alterações que driblaram a legislação, tudo com conivência do Estado e demais órgãos de controle. A barragem de Brumadinho foi construída em 1976 e a autorização era para que tivesse uma extensão de 18 metros, quando se rompeu, sua extensão era de 85 metros. O aumento deste tipo de Barragem, ou alteamento (nome técnico usado na área de mineração), é mais barato e extremamente frágil. O que leva uma empresa a optar pela via de recorrer a tecnologias já superadas é a obtenção de lucro acima de tudo, e o preço disso são milhares de vidas despedaçadas.
Segundo a Vale, a barragem de Brumadinho apresentava cerca de 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeito. Além do mais, outro grande problema neste modelo de barragem é que são construídas acima de cidades e distritos, aumentando o risco de morte de milhares de pessoas país afora, algo proibido em muitos países. Somente em Minas Gerais, são cerca de 450 barragens e, pelo menos, 22 delas têm riscos de se romperem, segundo levantamentos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente.
“É uma tragédia anunciada. É o quarto ou quinto rompimento de barragem nos últimos anos, com esse caráter tão calamitoso”, afirma Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais, que monitora esta atividade econômica e seus impactos ambientais nas bacias hidrográficas.
Um crime premeditado, uma vez que muitas denúncias já tinham sido feitas por universidades, Ministério Público e por várias entidades e movimentos que contestavam a mineração e defendiam a preservação das Serras da região. “Já estava avisado que Brumadinho iria acontecer lá em 2015. A universidade sugeriu, em documentos técnicos, uma série de operações de monitoramento de barragem; o Ministério Público também. O projeto de Lei “Mar de lama nunca mais” tinha feito recomendações; pedimos o fim do automonitoramento. Em 2015, a gente não discutia se teria outros rompimentos, mas quando aconteceriam. Temos uma série histórica em Minas Gerais: de 2002 para cá, tivemos um rompimento a cada dois anos. Se não mudar, a média se mantém”, reafirma o professor Bruno Milanez, em entrevista à Folha de São Paulo (28/01/2019).
Várias organizações reuniram mais de 60 mil assinaturas e apresentaram o projeto de Lei de Inciativa Popular “Mar de Lama Nunca Mais” na Assembleia Legislativa, após o rompimento da barragem da mineradora Samarco, ocorrido em Mariana, em novembro de 2015. O projeto propunha maiores restrições para o licenciamento de projetos de barragens. Pelo enorme lobby feito pelas mineradoras, dentre elas, a Vale, junto à maioria dos deputados, o Projeto de Lei não foi votado até hoje e está a mais de seis meses parado.
Importante lembrar que a mineração em Brumadinho afeta várias regiões do município. É o caso dos moradores do Bairro de Casa Branca, região que conta com dezenas de mananciais de água, dezenas de nascentes e cachoeiras e que enfrenta uma crônica falta de água.
A impunidade é outra realidade. O crime da Samarco ocorreu em Mariana, em 2015, e até nada foi feito para punir a empresa, amparar as pessoas afetadas e evitar novas tragédias. Na contramão do que foi proposto por entidades da sociedade civil e pelo Ministério Publico, o Governo de Minas, do então governador Fernando Pimentel (PT), enviou à Assembleia Legislativa um Projeto de Lei para facilitar o licenciamento ambiental. Tamanha submissão à mineradora, que o governo chegou a afirmar: “Segundo a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, ‘o empreendimento, e também a barragem, estão devidamente licenciados’”. O governo diz que a barragem “não recebia rejeitos desde 2015 e tinha estabilidade garantida pelo auditor, conforme laudo elaborado em agosto de 2018” (The Intercept Brasil, 25/01/2019).
Esta postura é seguida pelo atual governador de Minas, Romeu Zema (Novo), que já assumiu a gestão afirmando que uma de suas prioridades é agilizar ainda mais o processo de licenciamento ambiental, e se reuniu com representantes da Samarco para tratar da retomada das atividades da empresa em Mariana e Ouro Preto. Esta mesma postura é seguida pelo Governo Federal, do fascista Jair Bolsonaro (PSL), que sempre se posicionou pela flexibilização das leis ambientais, ameaçou extinguir o Ministério do Meio Ambiente, chegando, efetivamente, a nomear um corrupto para chefiar a pasta.
A dor dos moradores de Brumadinho
Hélio Gonçalves Maia, 44 anos, conhecido como “Seu Helinho”, morador de Córrego do Feijão desde que nasceu, trabalhou na construção da barragem e em várias construções da Vale. Em entrevista ao jornal A Verdade, disse: “A lama encontrou o Rio Paraopeba logo depois da entrada do ‘caldo de cana’ e começou a tragédia toda, levando amigos, levando vidas, porque nunca mais vai ser a mesma coisa. A Vale está no córrego do feijão há muito tempo, sempre saiu um boato de que ela iria tirar o pessoal de lá e passar para outro terreno, mas nunca aconteceu. Nunca deram nada pra gente. Você vê aí que Córrego do Feijão está bem desestruturado. Mas se falasse que ia comprar o pessoal ia vender, porque quem não quer melhorar de vida? Essa poeira da Vale faz mal para a gente e atrapalha nossa vida”.
“Antes da Vale, já tinha mineração no Córrego do Feijão, mudou muito pouco porque sempre fomos atacados pela poeira de mineração. Antes era a poeira da Ferteco, a Vale comprou a Ferteco e continuou castigando Córrego do Feijão, tudo poeira, estrondo de dinamite que rachou casas, acabou com nosso asfalto passando carreta pesada, mas nunca ajudou a consertar nossas estradas.” completa seu Helinho.
E continua: “Impactou na pesca, o pessoal criava gado, tinha agricultura, porque muitos tentavam não depender da Vale, de ter que trabalhar na mineração, agora destruiu tudo. Também tem a estrada, agora que acabou, não sabemos como vai ser. Com a estrada rompida, o pessoal que trabalha em Brumadinho vai ter dificuldade de ir, gente que estuda em Brumadinho vai ter dificuldade também”.
Abandono das famílias
Seu Helinho continua: “Falaram ali que até agora não veio nenhum representante da Vale aqui falar com o povo como é que vão ficar os transportes e qual o apoio que eles vão dar para a gente. Estamos nos virando do jeito que pode.
Não tava bom, mas a gente tava sobrevivendo, então eles têm que voltar pelo menos com que era antes do jeito que está não pode deixar não. Mas pelo que a gente entende, essas informações não têm dados certos nenhum, não tem uma pessoa da Vale para ser o porta-voz pro povo para poder saber onde estão os corpos. Tem que ter um porta-voz no IML e não tem nada direcionado, toda informação chega de qualquer jeito a gente fica sabendo pelo rádio. Tem parente meu lá na porta da Faculdade Asa dizendo que não tem nenhuma informação certa”.
Em relação à quantidade de vítimas, diz: “Estão contando 60 mortos, mas vou encontrar mais de 100 porque tinha mais de 100 pessoas almoçando no restaurante, veio dois ônibus da Vale, mais ônibus dos terceirizados almoçar, porque tem várias empreiteiras terceirizadas e fora o pessoal que mora mais para baixo se achar todo mundo, com certeza, vai ser muito mais do que estão falando.
Na pousada de baixo tem um parente meu, minha prima, mais os hóspedes. Dizem que é na faixa de umas 60 pessoas na pousada Nova Estância e até agora quase ninguém foi encontrado. Minha prima mesmo não foi. Tinha também os mecânicos na oficina da Vale que não estavam almoçando, estavam no horário administrativo”.
O jornal A Verdade também entrevistou Ana Paula Rodrigues de Souza, de 26 anos, sobrinha de João Paulo Ferreira de Amorim Valadão, de 30 anos, que trabalhava como terceirizado há nove meses na empresa. “Para a Vale, cada pessoa, cada vida que foi retirada ali, é apenas um funcionário qualquer e por não ser funcionário direto da Vale, tem menos valor ainda. Da gente eles arrancaram o bem maior que agente tem, o amor que agente tem pelas pessoas, arrancou de famílias sorrisos e sonhos. Tem pessoas que foram enterradas na lama junto com os sonhos deles. Eles (a Vale) já sabiam que esta tragédia podia acontecer a qualquer momento (…), e estão achando que R$ 100 mil pagam a vida de alguém, isso não paga nunca a dor que agente está sentindo, eu tive que fazer uma denúncia nos Direitos Humanos e na Defesa Civil para eles colocarem o nome do meu tio como desaparecido, já fui no IML, no João XXIII (hospital) e nada”. E continua: “Meu tio vivia falado que eles (a Vale) tinham consciência disso, eles não soaram o alarme, eles não fizeram nada, deixaram para soar o alarme depois que tudo já tinha ido abaixo. Eu conversei com dois sobreviventes e eles contaram pra gente tudo que aconteceu”.
“Ele tinha uma filha de cinco anos, que começou hoje um tratamento com psiquiatra porque ela não está conseguindo lidar com a ausência do pai dela, tudo que ela queria era dar um abraço e um cheiro nele”, completou Ana Paula.
Até o fechamento desta matéria, eram 65 mortes confirmadas e 288 desaparecidos. Infelizmente, o número de mortos tende a aumentar muito, apesar do grande esforço dos bombeiros.
Enquanto não houver uma legislação mais dura contra crimes ambientais, os capitalistas continuarão colocando o lucro na frente da vida humana e da natureza. A solução é reestatizar a Vale e de todas as empresas estratégicas, que, como ela, foram privatizadas. É preciso haver punição de todos os responsáveis por este crime, a começar pelo presidente e dos principais executivos da Vale. É preciso colocar um basta na ganância dos empresários que destroem nosso planeta e assassinam o povo.
Leonardo Pericles, Rafael China, Poliana Souza e Maura Rodrigues – Belo Horizonte