Foram dois anos e sete meses de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) até que, no dia 10 de dezembro de 2014 (Dia Mundial dos Direitos Humanos), os membros da Comissão apresentaram o relatório final de suas atividades à presidenta Dilma Rousseff e à sociedade. De lá para cá, passaram-se pouco mais de quatro anos e praticamente nenhuma das 29 recomendações que constam no relatório saiu do papel.
A CNV, instalada em maio de 2012, foi criada pela lei 12.528/2011 para “apurar e esclarecer – indicando as circunstâncias, os locais e a autoria – as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 (o período entre as duas últimas constituições democráticas brasileiras), com o objetivo de efetivar o direito à memória e a verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
Na página inicial do site www.memoriasdadidatura.org.br consta um texto de introdução à questão da CNV que resume bem sua motivação e seu processo de criação e desenvolvimento:
“Foram necessárias décadas de luta incansável dos familiares de mortos e desaparecidos, exigindo o esclarecimento dos crimes ocorridos durante os governos totalitários da ditadura militar, para que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) fosse finalmente criada, cujo trabalho foi igualmente impulsionado pelas pressões de setores da sociedade civil organizada. Apesar de tardia, pois instituída praticamente 50 anos depois do golpe militar, ela foi um marco importante para passar a limpo esse período nefasto e violento da história do país.
Também foi importante porque, além de construir uma narrativa de memória e verdade sobre as violências e práticas repressivas do Estado durante a ditadura, a CNV formulou 29 recomendações para que o Estado possa promover justiça com relação aos crimes ocorridos no período, reparar simbólica, financeira e psicologicamente às vítimas e reformar suas instituições aperfeiçoando a democracia e visando a não repetição das violações de direitos humanos que ocorreram no período.”
O Estado brasileiro e nomeadamente 377 agentes públicos foram responsabilizados por crimes durante o período de apuração, incluindo na linha de comando os cinco generais-presidentes da ditadura militar. O relatório afirma ainda que, devido à falta de documentos, relatos ou testemunhas, nomes “conhecidos” não foram incluídos na lista porque não foi possível comprovar a participação deles em violações de direitos humanos. Ou seja, a lista dos violadores é bem maior.
A CNV confirmou o número de 434 pessoas mortas (224) ou desaparecidas (210), mas esta lista também é imensamente maior, pois, segundo levantamento da própria Comissão, estima-se que mais de 8.350 indígenas foram mortos em massacres, espoliações de terras, remoções forçadas de territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos, tudo isso num estudo que se limitou a analisar apenas dez etnias. Dentro das próprias Forças Armadas houve também muita repressão: cerca de 6.600 militares foram perseguidos, mortos ou expulsos de suas corporações durante as duas décadas de regime fascista. Centenas de sindicatos e entidades estudantis foram fechados e postos na ilegalidade.
Reparação às vítimas e punição aos violadores
Em entrevista ao jornal El País, em dezembro de 2018, a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reforça o debate sobre a relação direta entre a Lei da Anistia e o prosseguimento das recomendações da CNV: “Uma das recomendações foi a responsabilização dos agentes da ditadura. Isso recai sobre o Ministério Público Federal, que montou grupos de trabalho e instaurou inquéritos. Os resultados foram pequenos, primeiro porque os réus e testemunhas em sua maioria estão mortos e, em segundo lugar, porque o Judiciário não está cumprindo essa recomendação. O Judiciário ainda é a favor de que a Lei da Anistia [promulgada pelo general-presidente João Batista Figueiredo, em 1979, que concede anistia a todos os que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979] seja aplicada em qualquer caso. Também por isso, o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo, parado, desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta”.
As vitórias, até agora, foram poucas, mas merecem registro. A Justiça de São Paulo, por exemplo, determinou a mudança dos atestados de óbito do jornalista Vladimir Herzog e do estudante Alexandre Vannucchi Leme, após solicitação da CNV. Ficou oficializado, assim, que ambos foram mortos pelo regime militar, depois de serem torturados. A versão original dos militares era de que os dois haviam se suicidado, Herzog enforcado na prisão e Vannucchi atropelado por um caminhão.
Se praticamente nada foi feito no início do segundo mandato de Dilma (2015/16), o que esperar de agora, quando à frente da República está instalado um governo militarizado, recheado de generais, e cujo presidente é um ex-capitão do Exército defensor da tortura?
Por exemplo, a ministra Damares Alves (do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) já criou vários obstáculos em relação às indenizações pagas a pessoas perseguidas pela ditadura. Também na Câmara Federal um grupo de deputados do PSL (partido do presidente Jair Bolsonaro) se movimenta para coletar as assinaturas necessárias para abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de “investigar” o trabalho feito pela CNV.
Neste último mês de fevereiro, foi redigido o Manifesto em Defesa dos Direitos das Vítimas de Perseguição Política na Ditadura Civil-Militar Brasileira, que critica a tentativa de criar tal CPI, a política apresentada por Bolsonaro e seu grupo acerca do tema memória, verdade e justiça, bem como uma reportagem caluniosa publicada pela revista IstoÉ. O manifesto já foi subescrito por dezenas de entidades e centenas de pessoas ligadas às lutas populares e dos direitos humanos, muitas, inclusive, vítimas da ditadura.
Diz o parágrafo final do manifesto:
“Condenamos vigorosamente a tentativa de criar uma CPI sobre as indenizações às vítimas da ditadura. É a primeira vez na história que se criaria uma CPI contra os direitos humanos. Essa iniciativa é um grave retrocesso democrático. Se ela se efetivar será um atentado aos direitos das vítimas da ditadura e um rompimento com os elementos político-constitucionais que permitiram ao país voltar à democracia, com coesão social. Todas as vítimas da ditadura e os seus familiares e apoiadores não aceitarão demagogia política e revisionismo histórico com as suas memórias e os seus direitos. Mobilizaremos, lutaremos e denunciaremos em todas as instâncias nacionais e internacionais contra essa iniciativa que reacende, mais uma vez, o ataque das instituições do Estado aos nossos projetos de vida e aos nossos direitos humanos. Se necessário, denunciaremos essa nova violação do Estado em todos os foros nacionais e internacionais. Já resistimos ao arbítrio no passado e também resistiremos democraticamente no presente. Um país sem memória é um país sem futuro.”
Assim, é preciso continuar com as denúncias dos crimes cometidos contra o povo e a Nação durante a ditadura militar; resgatar a memória dos nossos combatentes, homens e mulheres que não temeram enfrentar o regime fascista; aproveitar a chegada dos 40 anos da Lei da Anistia (no mês de agosto deste ano) para pressionar o STF a reconhecer as decisões internacionais sobre a revisão da lei, no sentido de permitir a efetiva punição dos violadores dos direitos humanos; e, o mais importante, contribuir para o avanço da consciência do povo brasileiro de que o terror daqueles anos não pode se repetir nunca mais no Brasil ou em qualquer outro país.
Rafael Freire, jornalista
Algumas das principais recomendações do Relatório da CNV:
– Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985).
– Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais.
– Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de direitos humanos.
– Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964.
– Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.
– Retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos.
– Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura.
– Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos penais.
– Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos humanos.
– Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação.
– Revogação da Lei de Segurança Nacional.
– Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado.
– Desmilitarização das polícias militares estaduais.
– Extinção da Justiça Militar estadual.
– Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal.
– Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão.
– Introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal.
– Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV.
– Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos.
– Preservação da memória das graves violações de direitos humanos.
– Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar.