“Brasil acima de tudo, deus acima de todos” e o pseudo-arquétipo da colonização luso-jesuíta

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“Dentro dessa conjuntura, o Presidente Jair Bolsonaro parece reivindicar o mito medieval do herói branco que promove a cristianização e a civilização, explícito em seu slogan de campanha ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’.”

Sayonara Lopes


Foto: Reprodução

BRASÍLIA – Jair Messias Bolsonaro, militar de reserva e atual Presidente do Brasil, faz-se também protagonista de conchavos políticos e, recentemente, plasma na cariz da direita que se diz conservadora. Todavia, ao adotar-se uma análise socio-histórica, essa insígnia ideológica suscita questionamentos acerca de uma possível regressão social, concomitante ao neoliberalismo aplicado, e da polemicidade contraditória das declarações do político e seus coesos. Nesse viés, o córtex de tal cenário e de suas figuras centrais remete indubitavelmente ao cerne da formação do país. Pretende-se, a seguir, destrinchar esse arquétipo deturpado, que emergiu há mais de 500 anos.

A priori, a formação da colônia de exploração foi legitimada com a Bula Inter Coetera (1493), na qual o Papa Alexandre VI validava as designações escravagistas da Bula Romanus Pontifex (1454) para as terras do “Novo Mundo”. Em alicerces sólidos, na incipiente Idade Média, os navios portugueses introduzem os ideais de sua civilização urbana e classista aos conglomerados pré-urbanos indígenas. É sabido que essa “introdução” foi brutal e subitamente imposta aos nativos e, em seguida, agravada no contexto da contrarreforma calvinista. Destarte, a nação contemporânea surgiu de matrizes à medida que iam sendo desfeitas: indígenas foram destribalizados, negros, desafricanizados, e europeus, exaltados, dentro da perspectiva aristotélica, de subserviência étnica natural. O povo brasileiro se constituiu, então, distanciando-se do tradicionalismo do camponês europeu e dos ideais comunitários ou tribais dos escravizados. Essa deculturação foi fator irrefreável da susceptibilidade nacional ao progresso e à candente globalização. São notórias as expressões do processo autor da identidade nacional no âmbito social e político, hodiernamente, uma vez que a função prescrita apontada pelo sociólogo Darcy Ribeiro de “proletariado de ultramar, destinado a produzir mercadoria exportável, sem jamais chegar a ser gente com destino próprio” é ainda verosímil.

Dentro dessa conjuntura, o Presidente Jair Bolsonaro parece reivindicar o mito medieval do herói branco que promove a cristianização e a civilização, explícito em seu slogan de campanha “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Além de reiterar a artimanha colonial de promover a violência e a exploração, em propostas como a Carteira de Trabalho Verde e Amarela e a Reforma da Previdência, em nome de uma divindade cristã deformada no Século XXI, que dista de interpretações hermenêuticas e, diz-se, confraterniza com a frase hostil de Bolsonaro “bandido bom é bandido morto”. Porquanto, Bolsonaro prima como objetivo de governo resgatar ‘os valores da família cristã’, porém, o Deus cristão zela pelo amor ao próximo (Mateus 22:39), Ele é amor (1 João 4:8). Assim, a família cristã que inspira o Presidente parece ser uma vertente muito particular dos escritos bíblicos, especificamente a família de Ló (Gênesis 19), na qual as relações baseiam-se em enganação, corrupção e estupro. Não obstante, os ideais defendidos pelo político são antes atrasados que conservadores, posto que não estão atados a aspectos culturais ou tradicionais, mas sim, a um modo arcaico de hierarquia social. No olhar do sociólogo Pierre Bourdieu, a dominação que a elite exerce sobre a mentalidade social pode ser compreendida na “Teoria dos Capitais”, que consiste nas formas como o capitalismo se manifesta em uma estratificação cultural, econômica e social, tal qual paulatina no Brasil, já que a política bolsonarista se afasta de relicários ideológicos ou teóricos e estrutura-se no mito da impunidade, que paira sobre o imaginário nacional.

Nesse viés, as condições morfológicas supracitadas estão intimamente associadas à bajulação do Brasil com os Estados Unidos, em virtude de um paradigma histórico que o insere como seio do capitalismo moderno, e, portanto, seu desmoronamento implica o de seus ‘funcionários’ geopolíticos também. A crise do capitalismo “democrático” da década de 1990 é latente e radica em fenômenos de composição sociológica, conforme Eric Hobsbawm, são três os feixes problemáticos que envolvem os países de ordem capitalista, em consequência da importação dos valores do American Way of Life: uma diferenciação crescente entre o mundo rico e o mundo pobre, a ascensão do racismo e da xenofobia e a crise ecológica.

Nesse sentido, Jair Bolsonaro é uma figura que engloba todos esses tópicos, escrachadamente. A Reforma da Previdência agrega, veementemente, tal diferenciação social, pois esta acentua vantagens da elite e desagrega os beneficiários da classe média, já que trouxe um plano de carreira que garante reajustes de mais de 124% aos militares, enquanto aos servidores civis não há sequer reajuste previsto e, pelo contrário, propõe impor aos trabalhadores uma recorrência à capitalização da aposentadoria.

Sobre o segundo aspecto, a ascensão de racismo e xenofobia é compartilhada pelo cafetão norte-americano, mas isso não atenua o impacto que  o discurso de Jair tem sobre negros, LGBTQs, indígenas, mulheres e venezuelanos; a título de exemplo, sua declaração ao Campo Grande News, em 2015: “Não entro nessa balela de defender terra pra índio(…) [reservas indígenas] sufocam o agronegócio.”, quando, na verdade, o endeusado agronegócio fez do país o maior mercado mundial de agrotóxicos em 2008, o que compreende já o terceiro item pontuado por Hobsbawm, a crise ecológica. No Governo Bolsonaro, o desmatamento teve um aumento de 36%, segundo dados do INESC. Um exemplo da mentalidade desse governo em se tratando de ecologia é Oswaldo Ferreira, general da reserva cotado para ser Ministro dos Transportes, que declarou ao Jornal Estado de São Paulo que foi “tenente feliz na vida. Quando eu construí estrada, não tinha nem Ministério Público nem o Ibama. […] Ninguém pra encher o saco”, disse.

É visível, então, que o Presidente Jair Bolsonaro representa, de fato, um estereótipo de “bom colonizado”, o que explica até mesmo a aurora de seu apelido ‘Mito’, e o insere no papel de antagonista no desenvolvimento do país e da classe trabalhadora, ratificando as palavras do geógrafo Michael Parenti, “Não existem países subdesenvolvidos, mas sim, países superexplorados”, e os cortes na educação são uma legitimação clara da expectativa do governo de formar uma massa de manobra cega e escravizada. Acontece que o Estado não é empresa e os direitos básicos ou a Amazônia não são moedas de negociação com a Europa e EUA, faça-se claro. Afinal, na ordem que rege o Brasil em 2019, mais que nunca neste século de distopias, são imprescindíveis o levante popular e as críticas, seja como fizeram o poeta Gregório de Matos e o intelectual Frei Vicente do Salvador, ou fisicamente, como fizera Tiradentes.

Diz Paulo Freire: “Seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.”