O livro “The CIA as Organized Crime: How Illegal Operations Corrupt America and the World” (“A CIA como crime organizado: como operações ilegais corrompem os EUA e o mundo”, em tradução livre), do jornalista investigativo norte-americano Douglas Valentine, considerado um dos maiores estudiosos sobre a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, faz uma importante e contundente denúncia de como o imperialismo norte-americano promove a desestabilização de diversos países ao redor do mundo.
Por Paulo Henrique de Almeida Rodrigues
Rio de Janeiro
Imagem: Divulgação
Resultado de uma série de entrevistas com ex-agentes da CIA e da consulta de documentos secretos tornados públicos, seja por investigações do Congresso dos EUA, seja por vazamentos de informações da Agência, o livro de Valentine revela dois elementos chaves das ações da CIA e do imperialismo norte-americano relativamente pouco conhecidos. O primeiro foi o desenvolvimento de um padrão de repressão violenta contra os adversários da dominação estadunidense que se desenvolveu a partir de meados de 1967, com o Programa Phoenix, no Vietnã, e serviu de modelo para outras ações em todo o mundo.
O segundo é o controle, pela CIA, sobre o tráfico de drogas mundial, elemento estratégico para o poder hegemônico dos EUA no mundo e instrumento de corrupção de autoridades locais, desorganização da população e financiamento de ações clandestinas de repressão.
Compreender esses dois aspectos das ações políticas de dominação dos Estados Unidos é fundamental para quem combate o imperialismo e luta pela soberania nacional e a transformação social.
Torturas e assassinatos em massa
O Programa Phoenix foi criado para combater a bem sucedida ofensiva do Tet, um conjunto de operações do exército do Vietnã do Norte e dos guerrilheiros vietcongs a partir de julho de 1967. Como as forças armadas dos EUA e do Vietnã do Sul vinham sofrendo derrotas seguidas na frente de combate, inclusive graças ao apoio dado pela população vietnamita aos vietcongs, que eram profundamente enraizados na sociedade do Vietnã do Sul, a CIA montou o Programa Phoenix para procurar identificar, isolar e eliminar os vietcongs nas aldeias e cidades do Sul. O programa consistiu no estabelecimento de ações sistemáticas de investigação, sequestro e tortura para obter delações e cooptar militantes para se tornarem agentes duplos e colaborarem com repressão política, identificando e apontando outras lideranças clandestinas para que estas fossem eliminadas.
O Programa Phoenix foi concebido para ser executado pelas forças de repressão política vietnamitas, sob supervisão direta da CIA, que treinava os agentes da polícia política e órgãos de informação das forças armadas sul-vietnamitas em técnicas de investigação, tortura e assassinato sistemático de lideranças vietcongs e da população do Vietnã do Sul que dava apoio à guerrilha.
Para isso, foram estabelecidos centros de coordenação da inteligência em cada província, de onde partiam as ações de investigação e assassinato, e se promoviam torturas sistemáticas de suspeitos de serem agentes vietcongs ou seus colaboradores. As torturas visavam obter informações sobre a rede de agentes vietcongs e conseguir a defecção de quadros que se tornariam agentes duplos. Uma vez identificada uma rede de agentes vietcongs com apoio popular, eram lançadas ações de assassinato não só dos agentes, mas de todas as pessoas suspeitas de colaboração com o vietcong. Tais ações matavam dezenas ou centenas de pessoas, dizimando famílias inteiras. O famoso massacre de My Lai, que ganhou ampla divulgação na mídia, em 1975, é um exemplo, e consistiu na execução fria de 504 pessoas por soldados da 11ª Brigada da 23ª Divisão de Infantaria do Exército dos EUA.
O livro de Valentine mostra que, apesar da derrota dos EUA para o Vietnã, em 1975, os métodos desenvolvidos pelo Programa Phoenix passaram a ser aperfeiçoados e levados para outros países do mundo.
Como as ações do dos agentes da CIA envolviam prisões não autorizadas, torturas e assassinatos em massa, eram realizadas de forma totalmente encoberta e à margem da lei. Para tanto, precisavam contar com formas de financiamento que não pudessem estar submetidas ao controle do Congresso dos EUA, daí sua ligação com o tráfico de drogas e a corrupção.
O Programa Phoenix firmou um modelo de combate à esquerda que vem sendo aplicado cada vez mais, segundo Valentine. Tal modelo envolve também a corrupção, a manipulação psicológica, o terror e o uso das drogas no sentido acima apontado. O Chile, El Salvador, Guatemala e Nicarágua. nas Américas, foram países onde a CIA organizou ações baseadas no padrão do Programa Phoenix. Da mesma forma, ações desse padrão serviram de base para as duas guerras do Iraque, no Afeganistão, na Líbia, em países africanos, como a Somália, e nos diversos países que resultaram da intervenção da OTAN e dos EUA na antiga Iugoslávia.
Segundo o autor, as ações do padrão Phoenix dependem da colaboração de forças internas nesses países, do estabelecimento de centros clandestinos de tortura e do financiamento do tráfico de drogas e de armas. Não é à toa, por exemplo, que a produção de ópio e heroína no Afeganistão se multiplicou por dez desde que os EUA e a OTAN invadiram esse país no final de 2001, como mostram Valentine e outros autores, como F. William Engdall, no livro “Full Spectrum Dominance” (Domínio Total do Espectro), e Shaun Attwood, em “War on Drugs” (Guerra às Dorgas).
Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, o padrão do Programa Phoenix foi adotado também no interior dos EUA, a partir da adoção da legislação de exceção, simbolizadas pelo Patriot Act, de 26 de outubro de 2001, que acabou com o habeas corpus e permitiu a prisão preventiva e sem julgamento de suspeitos e a interrogação apoiada por tortura.
Além dessa legislação, os EUA criaram o Departamento de Homeland Security (Segurança Interna), que coordena o conjunto das ações desenvolvidas internamente pela CIA, FBI, forças armadas, Guarda Nacional e polícias estaduais e locais, mantendo centros de prisão e interrogação clandestinos, e realizando espionagem sobre os cidadãos, infiltração de agentes em organizações e movimentos sociais e sequestro e detenções de oposicionistas sem autorização judicial.
A CIA e o tráfico de drogas
O segundo elemento tratado no livro é o controle sobre a produção e o tráfico de drogas no mundo, considerado pelos EUA como um assunto estratégico para a manutenção do seu poder imperial, por três razões principais. A primeira é que o tráfico facilita a corrupção e o enriquecimento ilícito dos grupos e partidos de direita aliados dos EUA no interior dos países da periferia do capitalismo. A segunda é que o controle sobre o tráfico permite à CIA, que funciona como principal instrumento do mesmo, financiar suas ações clandestinas de repressão no mundo e no interior dos EUA, reduzindo os controles democráticos sobre suas ações. E, finalmente, o tráfico contribui para desorganizar os movimentos sociais populares, facilitando seu controle pela violência tanto das gangues de traficantes, quanto da polícia.
A origem da identificação e do uso do tráfico de drogas como instrumento de poder teve origem no apoio ianque ao Kuomitang chinês na sua luta contra o Partido Comunista Chinês. Para se financiar, o Kuomitang dominara a produção e o tráfico de ópio na China e em outros países asiáticos. O governo dos EUA tinha conhecimento disso, e fez vista grossa, passando, aliás, a estudar a forma de operar do Kuomitang pelo seu potencial para a luta contra o comunismo, além de ter fornecido apoio logístico para o transporte de drogas.
A ligação do Kuomitang com o tráfico de drogas não é um caso isolado. Segundo Valentine, são, em geral, grupos da direita política aliada aos EUA que controlam a produção e o tráfico de drogas no mundo, sob supervisão e com a participação direta da CIA.
Ele diz que o início do tráfico de drogas no México nos anos 1970 ocorreu, em grande parte, por uma necessidade da CIA. Para organizar o novo centro do tráfico no México, a Agência enviou para lá, em 1973, o cubano expatriado Alberto Sicilia-Falcon, que também ficou encarregado de organizar o tráfico de armas para as organizações criminosas mexicanas e para os movimentos de direita centro-americanos.
Valentine menciona outros partidos e grupos de direita que exploram ou exploraram o tráfico de drogas, como o governo sul-vietnamita até o seu fim, em 1975, os cubanos anticastristas da Flórida, os Contra na Nicarágua, o Talibã no Afeganistão e o movimento fundamentalista turco Güllen. O tráfico de drogas também está fortemente imiscuído com partidos e grupos de direita em toda a América Latina ainda hoje.
Alguns dos maiores centros de distribuição de drogas estão localizados às vezes dentro de bases clandestinas da CIA. A Agência mantém centenas de aviões e campos de pouso clandestinos espalhados pelo mundo, inclusive em território dos EUA, para o transporte das drogas. Para tanto, em muitos casos, conta com a colaboração de elementos das cúpulas de igrejas neopentecostais e de seitas fundamentalistas islâmicas, como o já mencionado movimento do líder fundamentalista turco Fethullah Güllen, para o transporte e a movimentação internacional de valores do tráfico. Com a colaboração dessas organizações religiosas é possível, por exemplo, promover a transferência de recursos vultuosos pelo sistema financeiro através de depósitos pequenos feitos por milhares de fiéis de um país para organizações religiosas localizadas em outros países, de forma a burlar o controle das autoridades financeiras.
Dinheiro do tráfico financia golpes da CIA
Ligados ao tráfico de drogas, funcionam as redes de corrupção política e o tráfico de armas, os quais constituem elementos críticos da política de mudança de regime que vem sendo praticada numa infinidade de países da América Latina, Sudoeste da Ásia e Europa Central.
A política de mudança de regime é em grande parte financiada pelos tráficos de drogas e armas e utiliza de forma intensa ações de guerra psicológica. Valentine menciona um importante manual da CIA utilizado na política de mudança de regime, chamado “Psychological Operations in Guerilla Warfare” (Operações psicológicas na guerra de guerrilha), que contém técnicas de controle e manipulação das mentes de grupos-alvo de uma população.
O autor menciona que as estimativas são de que o tráfico de drogas tenha uma movimentação anual de 300 bilhões de dólares. Esse dinheiro acaba nos bancos mediante gordas comissões. Boa parte disso é usada para corromper autoridades, comprar armas e financiar a derrubada de governos contrários aos interesses dos EUA. Tanto é verdade, que a CIA criou uma Divisão Digital para acompanhar a movimentação do dinheiro ilícito, exatamente porque tem como uma das suas maiores prioridades ter o controle sobre esse dinheiro.
Drogas e desmobilização popular
Por fim, o último aspecto político do interesse da CIA no tráfico de drogas é sua utilização como instrumento de controle das comunidades pobres, uma forma de desorganização dessas populações e de estabelecimento de seu controle sobre vias violências. Com isso, as pessoas se matam entre si e vão parar nas cadeias em grande proporção, onde serão exploradas como mão de obra escrava pelas empresas que administram as prisões.
Já não é segredo que a CIA introduziu o tráfico nas comunidades negras e latinas para destruir sua capacidade de organização e desenvolvimento político. Este tipo de ação foi fundamental, por exemplo, na destruição do movimento marxista dos Panteras Negras, que tinham um enorme trabalho social e político nas comunidades negras nas periferias das grandes cidades dos EUA.
Dessa forma, o tráfico de drogas, ao penetrar nas comunidades pobres, contribui para desorganizar as organizações independentes das sociedades e alienar a juventude para melhor controlá-la. Por isso, as organizações revolucionárias que têm como objetivo organizar a classe trabalhadora para a conquista do poder político e a construção do socialismo não podem conciliar com as drogas e precisam desenvolver uma intensa luta política e ideológica contra sua disseminação, tendo claro que tratam-se de mais um instrumento de controle e poder do imperialismo sobre a humanidade.