Ana Carolina Marra de Andrade
Júlio César Villela da Motta Filho
Em seu texto Sobre A Questão Judaica, publicado originalmente em 1843, Karl Marx delibera pela primeira vez sobre a irresolutividade da emancipação política. Para ele, a real emancipação humana não pode vir das instituições já consolidadas da sociedade civil-burguesa, pautada no modo de produção capitalista e na exploração do trabalho (MARX, 2010a).
Já em 1848, no Manifesto Comunista, Marx e Engels trazem, ao final da seção II, o que seria um programa de transição para o comunismo[1] após a conquista do poder político pelo proletariado, que deve ser entendido como um mero momento antes da possibilidade de emancipação real do gênero humano proporcionada pelo comunismo, sendo esse momento o socialismo. As 10 medidas trazidas “que parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção.” Essa foi o primeiro programa escrito pelos dois, que contribuiriam com movimentos, partidos e etc. por diversas vezes ao longo de suas vidas. Em 1891, é publicada pela primeira vez a obra Crítica ao programa de Gotha, escrita pelo filósofo alemão Karl Marx. Nesse texto, Marx rebate o programa do que viria a ser o Partido Social-Democrata da Alemanha, criticando o programa em diversos pontos, reforçando a necessidade de uma transformação radical no modo de produção e em toda a sociabilidade, alcançada por meio de um processo revolucionário.
Na mesma década, já em 1899, é também publicada a obra Reforma ou Revolução?, da militante comunista e escritora alemã Rosa Luxemburgo, na qual ela apresenta uma crítica marxista à teoria reformista de Eduard Bernstein. Segundo ela, é impossível que a classe trabalhadora chegue ao poder de fato através dos instrumentos da democracia burguesa, sendo incoerente com a luta verdadeiramente socialista defender a social-democracia bernsteiniana. Luxemburgo coloca:
As estruturas capitalistas da propriedade e do Estado evoluem em direções completamente opostas. Por esse facto, a luta quotidiana concreta da social-democracia perde, em última análise, toda a relação com o socialismo. A luta sindical e a luta política são importantes porque actuam sobre a consciência do proletariado, porque lhe dão uma consciência socialista, porque o organizam como classe. Atribuir-lhe um poder directo de socialização da economia capitalista, não é somente ir ao encontro de um falhanço nesse campo, mas ainda retirar-lhe qualquer outra significação: deixam de ser um meio de educar a classe operária e de a preparar para conquistar o poder. (LUXEMBURGO, 2002)
Mas o quê tudo isso tem a ver com a candidatura de Bernie Sanders?: o leitor pode se perguntar. Sanders é um atual senador e candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata que tem se destacado como o único capaz de vencer o bilionário Republicano Donald Trump nas urnas. Ele se autoidentifica como um socialista, o que pode remeter o público para a ideia de que ele é um defensor do socialismo científico, real, pautado pela teoria marxiana como uma fase de transição para o comunismo[2] (marcada pela ditadura do proletariado). No entanto, o próprio Bernie Sanders já explicou que o socialismo que defende seria um modelo de “socialismo democrático” a partir da opção econômica da social-democracia, o que está muito mais próximo, em realidade, das propostas elaboradas pelo Partido Social-Democrata da Alemanha e por Bernstein, que foram alvo das críticas de Marx e Luxemburgo abordadas acima. O uso da palavra socialista por Bernie faz sentido se analisarmos a conjuntura dos Estados Unidos, um país capitalista de tradição republicana no qual direitos sociais muito básicos, tais como saúde pública universal, são considerados como políticas radicais e de extrema-esquerda.
Apesar de, portanto, ser necessário que a esquerda revolucionária brasileira se posicione de maneira bastante crítica ao programa reformista de Sanders, é importante salientar, também, as partes benéficas de sua candidatura para a melhoria da vida do proletariado e das minorias políticas estadunidenses. O programa de Bernie, apesar de seus problemas, pode gerar benefícios significativos na vida de muitas pessoas, sejam elas dos Estados Unidos ou não – sobretudo quando posto em comparação com seu maior adversário político, o conservador misógino e racista Donald Trump, que governa em prol apenas dos interesses da burguesia nacional do país em uma empreitada de fake news, devastação ambiental e fortalecimento da indústria da guerra, das condições precárias de trabalho e da desigualdade social (dentre outros). Mesmo que esse apelo do Democrata para a resolução política de todos os problemas não seja, como vimos anteriormente, um caminho factível para a classe trabalhadora e para a emancipação real do gênero humano, é importante que sejam postos na balança os benefícios de ter alguém como Sanders como representante máximo da população da maior potência capitalista mundial.
A gratuidade do ensino e da saúde, o antipunitivismo e a segurança antirracista, a histórica posição anti-guerra, a agenda de transição ecológica, a legalização das drogas, a defesa de direitos trabalhistas e a ampliação do sistema previdenciário são apenas algumas das propostas do atual senador em sua campanha[3]. O “socialismo democrático” de Sanders não têm apostado na conciliação de suas propostas com os interesses antagônicos das grandes indústrias e do mercado, como uma parte significativa dos partidos atualmente declarados de esquerda ou “socialistas” no Brasil pretendem.
Sobre a América Latina, a prática imutável de Sanders de se posicionar como anti-guerra, pró direitos humanos e a favor da autodeterminação dos povos também pode ter um impacto um tanto quanto relevante. Além de ser a favor de uma abordagem totalmente diferente com os imigrantes latinos alvo do racismo das recentes políticas segregacionistas e punitivistas do atual presidente Donald Trump, Sanders sempre defendeu, dentro da perspectiva (ainda que limitada) social-democrata, a autonomia Latino-americana frente à política imperialista do país nortenho. O atual senador chegou, inclusive, a elogiar a resistência sandinista na Nicarágua e as reformas de Fidel Castro com a educação e saúde em Cuba[4], e defende o fim do avassalador bloqueio econômico à ilha caribenha[5].
Os textos de Marx e Luxemburgo, mesmo que sempre devendo ser compreendidos dentro de sua conjuntura, continuam muito atuais. A emancipação política não é “real”. Porém, vejam bem, o problema colocado pelos autores acima não significa que a política não é importante. Faz, certamente, muita diferença se quem está ocupando o poder executivo nos Estados Unidos é um reacionário como Trump, ou até mesmo seus precursores que não eram tão diferentes assim, ou um “falso socialista” que possui ideais minimamente progressistas e tem contribuições fáticas a fazer para a classe trabalhadora, para as minorias e para os países alvo do imperialismo norteamericano de todo o mundo.
A luta política, quando enxergada dentro das limitações intrínsecas da própria politicidade será, para Karl Marx, sempre limitada. Como pontuava José Chasin: “Não há política radical, pois todo ato político é um meio, que não possui finalidade intrínseca, mas é o instrumento de um conteúdo, ou seja, de um objetivo externo a ele.”. (CHASIN, 2010). Mais especificamente, para os fins do presente texto, Bernie Sanders, como já dito, não proclama por uma revolução proletária, capaz de destruir a divisão do trabalho, a propriedade privada, a política e o próprio Estado. Porém, mesmo se o fosse, uma luta política que não busque se remeter para além de si mesma, estará sempre limitada pelas próprias limitações da esfera política. A política, para Marx, seja no capitalismo ou nas sociedade anteriores marcadas pela divisão do trabalho e da propriedade privada, nasce de uma “falha”; ela existe devido às limitações de sociabilidade: “A politicidade indica, ao contrário, uma insuficiência da sociabilidade.” (SELVA, 2008) Por isso, no comunismo, como dizem Marx e Engels no Manifesto: “(…) o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.” (ENGELS, MARX, 1998, p. 59)
Lívia Cotrim dizia, remetendo-se às obras de Chasin que:
Assim, ao invés da prática política, a luta pela emancipação humana exige uma prática metapolítica. Esta faceia o estado, mas não o tem como meta; enfrenta a politicidade, mas não o faz politicamente, não se orienta pela razão política, portanto não alimenta a ilusão de que a causa dos males sociais resida na presença do outro partido no poder, não submete os fins aos meios, especialmente às formas e instrumentos de organização, entre os quais o partido político, em especial mas não exclusivamente, vem sendo mistificado. (COTRIM, 2005)
Tal posição em defesa de uma prática metapolítica, uma prática que não caia, jamais, na “tentação” de se crer na ilusão da política está totalmente pautada no pensamento de Marx. Dentre os muitos exemplos, no artigo Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”, Marx afirma, de forma bastante crítica aos partidos políticos, mesmos os radicais, que vêm a causa das mazelas sociais no “adversário” que segura o “timão do Estado”:
O Estado pode agir de outro modo? O Estado jamais verá no “Estado e na organização da sociedade” a razão das mazelas sociais, como exige o prussiano do seu rei. Onde quer que haja partidos políticos, cada um deles verá a razão de todo e qualquer mal no fato de seu adversário estar segurando o timão do Estado. Nem mesmo os políticos radicais e revolucionários procuram a razão do mal na essência do Estado, mas em uma determinada forma de Estado, que querem substituir por outra forma de Estado. (MARX, 2010b, p.38)
Por fim, a prática metapolítica que deve ser defendida pelos comunistas não pode ser lida como um “tanto faz” para quem está no poder. E é justamente dessa perspectiva que devemos encarar a análise do presente texto: Sander não é comunista. Isso está claro. Porém, analisando sua candidatura concretamente, tendo em vista as limitações dele e da própria esfera política em que está atuando, devemos não ter uma atitude de indiferença, de omissão. Ao que tudo indica, pelos argumentos já citados, a candidatura de Sanders pode apresentar diversas vantagens, principalmente analisando a realidade brasileira. Minimamente, sendo contra as sucessivas intervenções militares americanas e não reproduzindo os discursos de ódio de Trump, e, mesmo não acabando com a dependência econômica brasileira (e quase de todo mundo) aos E.U.A, a eleição de Sanders pode propiciar um avanço aos países da América Latina. Perante contradições como essa que o sistema capitalista nos trás, é preciso que a esquerda revolucionária estude com cautela para se posicionar de maneira coerente e sensata, prestando toda solidariedade à luta das trabalhadoras e dos trabalhadores de todo o mundo.
BIBLIOGRAFIA:
Berniesanders.com
CHASIN, José. Rota e prospectiva de um projeto marxista. Revista Ensaios Ad Hominem. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, n. 1, t. III, 2000.
COTRIM, Lívia. José Chasin – Metapolítica e Emancipação Humana. Cadernos de Ciências sociais: n, 619, 2005.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução?. Luxemburg Internet Archive (marxists.org), 2002. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1900/ref_rev/index.htm>. Acesso em: Março de 2020.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
______. Sobre a questão judaica. São Paulo : Boitempo, 2010a.
______. Lutas de Classe na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010b.
SELVA, Ana. J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx. Revista Verinotio: n. 9, Ano V, nov. 2008.
https://subverta.org/2020/03/04/eleicoes-nos-estados-unidos-bernie-sanders-superterca/
http://www.rosalux-nyc.org/wp-content/files_mf/earle_sanders.pdf
https://berniesanders.com/issues/how-does-bernie-pay-his-major-plans/
[1] Obviamente, como os próprios Marx e Engels afirma, essas medidas caberiam apenas em alguns países, e teriam em vista o desenvolvimento das forças produtivas, mais especificamente, europeias no ano de 1847. Assim, não se trata de um programa universal.
[2] Interessante pontuar que Marx efetivamente nunca utilizara o termo socialismo para descrever essa fase de transição. Nas Glosas marginais sobre o Programa de Gotha, publicadas somente em 1891, Marx fala em 1° e 2° face do comunismo.
[3] Propostas de Bernie Sanders na íntegra em inglês: <https://berniesanders.com/issues/> e em espanhol: <https://berniesanders.com/es/issues/>
[4] Bernie Sanders praised Fidel Castro in 1985 interview: ‘he educated kids, gave kids health care, totally transformed society’: <https://www.dailymail.co.uk/news/article-3281335/Bernie-Sanders-praised-Fidel-Castro-1985-interview-educated-kids-gave-kids-health-care-totally-transformed-society.html>
[5] Debate nos EUA: Sanders defende fim de bloqueio econômico a Cuba e Hilary ataca Fidel : <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/03/debate-nos-eua-sanders-defende-fim-de-bloqueio-a-cuba-e-hillary-ataca-fidel.html?__cf_chl_jschl_tk__=4eb325379ce3f8b407400a5d056b5ed9fbf2e006-1585073592-0-AQTP8t42_z72QpvgEHP5EsNlqUsN_Hp5y734O4mgLld3QdQrkX69-3Maufsqq6ugnK6YEFUm5KjCTg3atoNXjFMD_rZzVPWa_1h5uR8nNfySeL0dBFPFkhliYTQmOZwyONogGBkAW9lVe8qOTaa-jbRcoXoVhg-klhINt-Nv3v1oFTNXqI9PRXFJ6wOCXyUs81jA2WxHIxTSHY3Cto6nz8RVjLhQPnZ_GEMdg7vdPzS75hD0Z3QHEytVvKXJXRlF7ZK_rjDIIsRgQB8rjTVAAiJvOK3LQcS65ym_r4sEDK9MHkijli9jm3VwBldOjzETaP6M-q0t9xipjky5j_LzURsq67lf0wi_3BkCMRnLuirZMvmTPZrtfcd-WJSOzu89BMeO8VjRoK2NoRsRMyZpHB4>