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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Diário de uma mãe solo

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Raquel Santana

CARUARU – Sou mãe solo de gêmeos (a quem chamo carinhosamente de ibejis – orixá protetor das crianças e expressão do povo iorubá que significa ele é dois) de 1 ano e 7 meses, os amamento em livre demanda, e o meu tempo é praticamente exclusivo para eles. O surto de coronavírus intensificou ainda mais essa situação, visto que minha rede de apoio diminuiu devido à necessidade de isolamento social para o controle da doença. Então decidi escrever este texto em forma de diário, a maneira mais ágil que venho encontrando para me expressar desde que as crianças nasceram. 

Sou mãe solo desde o início da gestação e nunca tive vergonha de me assumir como tal. Mãe solo é aquela que cria suas crianças sem ou com participação desigual do pai. É uma designação mais ampla que “mãe solteira”, a qual limita esse tipo de maternidade a um estado civil. Mesmo uma mulher casada pode ser considerada mãe solo, se ela tem uma sobrecarga no cuidado de seus filhos, assim como as mães divorciadas, viúvas, mulheres que engravidam por inseminação artificial através de homem anônimo e mulheres que adotam crianças e as criam sozinhas. Ou seja, somos diversas e numerosas. 

De acordo com os últimos dados do IBGE, mais de 80% das crianças têm como primeira responsável uma mulher. Das famílias comandadas por mulheres, 56,9% vivem abaixo da linha da pobreza. Quando estava grávida, em 2018, durante a Copa do Mundo, li uma notícia do site Catraca Livre que me chamou atenção. Seu título: 6 dos 11 titulares da seleção foram criados por mães solo. A origem social e racial da maioria dos jogadores é pobre e negra. Se existem mães solo em todas as classes sociais, certamente elas estão mais presentes nas camadas menos assistidas, e seu número é ainda maior entre as mulheres negras, visto que a pobreza no nosso país é herança de uma política colonial e escravocrata.

Sou mãe solo de classe média e moro na casa da minha mãe e, por isso mesmo, tenho privilégios em relação às minhas companheiras mais pobres. Conheço duas mães solo de gêmeos que entraram em depressão frente ao contexto de dar conta de seus filhos sem companheiro, rede de apoio e pouco dinheiro. Encontrei uma delas com seus gêmeos em um parque público de Caruaru, para onde costumo levar minhas crianças. Ela, uma mulher negra na faixa dos 30 anos, me disse o seguinte: “Eu chorava o tempo todo. O pai deles se trancava no quarto e me deixava sozinha com eles. Me separei quando tinham 3 anos. Só consegui procurar ajuda psicológica no posto de saúde quando completaram 4 anos e começaram a ficar mais independentes”. 

Apesar de não enfrentar tantas adversidades, não posso dizer que tenho um cotidiano leve. Sou jornalista e trabalhava como produtora cultural e musicista, além de vender pães artesanais, mas, desde que as crianças nasceram, tenho enfrentado dificuldades de voltar ao mercado de trabalho. Até para fazer trabalhos pontuais é um desafio, pois os shows de música geralmente são à noite e no Recife, onde eu morava até as crianças nascerem. As minhas crianças estão mais adaptadas com ausências pontuais durante o dia, mas, à noite, ainda são muito dependentes de mim, pois dormem na mesma cama que eu e mamam sempre que têm vontade.

Meu sono está sempre em falta, acordo com dores na coluna, conto nos dedos de uma mão as vezes que saí sozinha para me divertir. Cumprir com a higiene básica às vezes é difícil. Tem dias que só consigo tomar banho quando já está de noite. Eu me exercitava regularmente até os últimos dias da gravidez, mas agora estou sedentária. A estética acaba ficando em último plano, o que, por vezes, me causa problemas na autoestima em relação à minha aparência, principalmente com o meu corpo, que mudou um bocado graças ao barrigão que fiz (cheguei a 39 semanas, algo incomum para uma gestação gemelar) e à amamentação prolongada.

E tem a parte mais complicada, que é educar as crianças através de uma comunicação não-violenta. Às vezes, engolida por situações estressantes (“você só quer ficar no braço, mamãe tá cansada”, “por que tá chorando tanto?”, “solta o peito da mamãe, você não para de mamar”, “você não precisa ter um ataque de raiva quando eu não faço todas as suas vontades”, “que soneca curta foi essa, neném?”, “você não tá comendo nada, tem que comer pra ficar forte!”, “por que não quer tomar banho? a água tá tão boa!”, “saia daí, é perigoso!”, “solte o controle remoto”), me vejo sem paciência, elevando a voz para elas. 

Sentimento de culpa e frases como “que loucura foi essa de ter filhos, é muita responsabilidade, não vou dar conta!” vêm à tona. Não vou dizer que elas ficam o tempo inteiro na frente da TV, pois são bebês que brincam bastante, mas confesso que elas ficam mais tempo assistindo à televisão do que eu gostaria. É um recurso que utilizamos para conseguir fazer serviços domésticos ou simplesmente quando o cansaço bate forte. Para amenizar o impacto da exposição a telas, exibe desenhos de conteúdo educativo, com destaque para produções africanas, pois tenho a preocupação de criar minhas crianças sob uma perspectiva antirracista, e também feminista e ecológica.

Sobre os preconceitos que enfrento? As crianças entraram na escola no início deste ano e lá fiz um enfrentamento, afirmando que a linguagem utilizada pela instituição é excludente em relação às mães solo. Na época da gravidez, me senti desconfortável em rodas de gestantes em que mães solo são minoria. Estava bastante fragilizada durante o meu trabalho de parto, pois queria normal, mas não consegui. Se no Brasil uma mulher grávida de um bebê enfrenta dificuldades para parir normal no sistema privado de saúde, devido à rapidez e ao lucro que as cesarianas rendem à classe médica, imagina uma grávida de gêmeos? Antes de iniciar a cesárea, um dos obstetras que realizava o procedimento perguntou: “cadê o pai?”, ao passo que o outro, uma pessoa mais sensível, respondeu: “não tem pai!”. 

Como falei no início deste texto, nunca me envergonhei de ser mãe solo, mas ouvir do médico que estava me ajudando a colocar minhas crianças no mundo um questionamento sobre o pai, doeu. Até o momento, não tinha sequer me lembrado dele, mas bastou o médico fazer essa pergunta para acionar a lembrança da minha projeção frustrada de gestar e criar essas crianças de maneira compartilhada com ele.

Nos primeiros meses após o nascimento das crianças, pensava nele, o genitor, principalmente nos momentos mais difíceis. Tinha muita raiva por ele não estar dividindo aquela carga comigo. Nos bons momentos, às vezes refletia: ele não está vivenciando nada disso, que pena para ele. Com o tempo, felizmente, a raiva foi se transformando em perplexidade frente à sua ausência presencial, afetiva e econômica. Talvez ainda estivéssemos juntos se eu tivesse feito pouco caso da falta de participação dele na gestação e perdoado sua traição. Só que estaria bem mais sobrecarregada e emocionalmente frágil do que estou hoje. Mãe solo, de uma forma ou de outra.

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