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sábado, 16 de novembro de 2024

A ideologia burguesa é um mar de leite.

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Filme Ensaio Sobre a Cegueira / Foto: Reprodução

Adriane Moreira, militante da UJR.

 

Contém spoilers

 “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos”

             Pandemia e quarentena. Capitalismo e ideologia burguesa. São palavras que poderiam sintetizar o período da crise na saúde que vivemos hoje, com o aumento exponencial de casos e mortes causados pelo COVID-19, o novo coronavírus. Entretanto, o fascistóide Jair Bolsonaro continua com suas declarações absurdas a respeito deste momento tão grave na vida do nosso povo, demonstrando a que interesses serve: aos interesses da classe dos mais ricos, que colocam o lucro a cima da vida.

            Contudo, aquelas palavras não somente resumem o atual cenário do Brasil, mas um renomado livro do autor português José Saramago, o “Ensaio Sobre a Cegueira”. Este é um romance que se passa num país que é, repentinamente, contaminado por uma cegueira, porém não uma cegueira comum, e sim por uma cegueira branca, como “um mar de leite”. Dessa forma, por aparentar ser uma pandemia perigosa e altamente contagiosa, o governo decide colocar o grupo de pessoas contaminadas, ainda pequeno, em quarentena num manicômio abandonado. E, dentro desses primeiros infectados, está a única personagem que não foi afetada pela cegueira: a mulher do médico, que decide, por preocupação com o marido afetado, fingir ter a cegueira para acompanha-lo.

            À medida que a história se desenvolve, mais pessoas vão sendo enviadas ao isolamento no manicômio, tornando-se superlotado. Há disputas pelo controle da comida e, principalmente, pelo poder sobre os contaminados do manicômio, posto que o governo deixou estes à própria sorte. E, em meio ao caos, a mulher do médico torna-se uma liderança dentro da sala em que dorme, assim como entre as mulheres que são enviadas ao grupo de maior influência na quarentena em troca de comida.

            Embora, a princípio, o “Ensaio Sobre a Cegueira” pareça colocar a cegueira como um vírus, ela é uma metáfora para uma pandemia muito mais complexa: a da ideologia burguesa. Esta é colocada pelo Karl Marx como essencial para a manutenção do status quo, visto que, através de um sistema de normas e ideias burguesas, consegue maquiar as contradições da sociedade capitalista, tornando o nosso povo despolitizado.

            Essa ferramenta da classe dominante é explicitada pelo Saramago em diversos momentos, como ao utilizar o recurso de não dar nomes aos personagens, porém identificá-los com as “posições” que eles assumem na sociedade: a mulher do médico, o médico, a mulher do primeiro cego, a rapariga dos óculos escuros, o menino estrábico, etc. Ele utiliza disso, especialmente, para expor um problema gigantesco da “sociedade da cegueira branca”: o patriarcado, que sempre coloca a mulher na sombra do seu marido, pai, irmão. A partir disso gera-se uma contradição dentro do próprio romance: como as lideranças do livro, as personagens mais marcantes, podem ser resumidas a apenas “a mulher do”?

             Também pode-se observar a ação da “ideologia da cegueira branca” num dos momentos mais tensos do livro, quando aparece o personagem “cego da contabilidade”, o único cego do local que não enxergava antes da epidemia. Por ele possuir vantagens, visto que sabe lidar com a cegueira, acaba sendo um dos líderes do grupo dominante do manicômio. Conforme as diferenças dentro do manicômio vão se agravando, a contradição entre o cego da contabilidade e a mulher do médico vai aumentando, demonstrando uma situação de “quem se aproveita da cegueira para explorar vs. Quem quer romper com essa exploração”. Dessa forma, o autor expõe como a classe dos exploradores utiliza da sua ideologia para aproveitar-se do nosso povo.

            No final do livro, as pessoas conseguem escapar do manicômio e, alguns dias depois, voltam a enxergar, tão repentinamente quanto no início da epidemia. E, em todo esse processo, a mulher do médico continua sendo a única que enxergava. Seria ela a representação de uma consciência de classe que rompe com a ideologia do mar de leite, que esconde a exploração, a fome, a miséria do nosso povo? Para responder isso, a afirmação da própria personagem pode explicar “penso que não cegamos, penso que estamos cegos, […] cegos que, vendo, não veem”.

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