Jorge Ferreira
SÃO PAULO – Desde 11 de março, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a situação de pandemia em decorrência da Covid-19 e orientou que a melhor forma de preservar vidas é o isolamento social, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 62/2020 com o objetivo de orientar os juízes a adotarem medidas preventivas à propagação do vírus nas cadeias brasileiras, inclusive colocando em prisão domiciliar os presos que não cometeram crimes graves, como é a maioria da população carcerária. Entretanto, passados quase três meses dessa recomendação, a realidade é que os presos estão sem nenhum contato com suas famílias ou advogados, confinados nas masmorras dos presídios, sem nenhum apoio do Judiciário para preservar suas vidas.
Em setembro de 2015, em julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o Supremo Tribunal Federal declarou o “Estado de Coisas Inconstitucional”, admitindo que a realidade dos presídios brasileiros fere o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º da Constituição Federal. Dormir no chão, ao lado de esgoto a céu aberto, com ratos e baratas, e comer comidas estragadas configuram prisão ilegal, e não somos nós que estamos dizendo, mas os ministros da mais alta instância judiciária. São mais de 800 mil cidadãos presos nessa situação.
Do lado de fora, familiares e amigos se desesperam sem notícias há meses. As mães, em sua maioria mulheres negras, denunciam que não conseguem sequer levar comida ou remédios e temem, com isso, que seus filhos adoeçam pela falta de alimentos ou mesmo por comerem as comidas estragadas servidas na maioria dos presídios. Para organizações que lutam pelos direitos humanos dentro das penitenciárias, a proibição de visita dos familiares, somada à suspensão do atendimento de advogados, como já acontece em 14 Estados e no Distrito Federal, aumenta os casos de tortura física e psicológica, além das inúmeras violações de direitos fundamentais já tão naturalizadas nas cadeias pelo Brasil.
Outra orientação da recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça foi que os tribunais reavaliassem as prisões provisórias, justamente com o intuito de liberar as pessoas para aguardar o julgamento em suas casas durante essa pandemia. Acontece que, segundo o último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, mais da metade dos presos ainda não teve julgamento e, portanto, ainda são considerados inocentes, segundo a Constituição.
A grande maioria dessas pessoas está presa por algum crime relacionado ao tráfico de drogas. São pessoas flagradas com pequenas quantidades, muitas vezes usuários que, por morarem em comunidades, são considerados traficantes pela polícia. A questão é: se a recomendação é colocar em liberdade essas pessoas que não cometeram nenhum crime violento e sequer foram julgadas, por que não se cumpre?
A verdade é que os juízes não sabem o cheiro das cadeias. A verdade é que, por mais que os 11 ministros do Supremo queiram se maquiar de humanistas, o sistema de Justiça brasileiro está montado sobre uma estrutura racista, genocida, disposta a deixar morrer centenas de milhares de mães e pais trabalhadores nas masmorras dos presídios brasileiros. Montam seus discursos humanitários tentando salvar suas biografias, mas nunca pisaram numa prisão, não se importam com a dor de uma mãe ao deixar seu filho para morrer nos verdadeiros navios negreiros da modernidade.
E ainda que um ou outro juiz tente cumprir o que diz a Constituição, a estrutura do Judiciário não permite grandes avanços, pois pertence a uma velha sociedade. Uma sociedade onde a classe rica empurra milhões de trabalhadores para a miséria; onde os megatraficantes engravatados lucram bilhões com o tráfico de drogas; enquanto milhares de jovens são assassinados ou presos nas bocas de fumo.
Quando juízes nada fazem para impedir o avanço do coronavírus nas prisões, apenas escancaram o caráter da classe a que servem: a burguesia é desumana e cruel. Por isso, é o momento de mobilizar os familiares dos presos para cobrar que o Judiciário cumpra a lei que eles mesmos inventaram, levar a solidariedade de classe e, sobretudo, organizar a luta pela vida dos trabalhadores e trabalhadoras em situação de cárcere.