Política de habitação em Porto Alegre é sinônimo de violência

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LUTA DE CLASSES – Prefeitura promove violência contra os pobres em Porto Alegre. (Foto: Reprodução/ATS)
Henrique Vieira e Vinícius Stone

PORTO ALEGRE (RS) – Este é um relato de uma situação que já se tornou corriqueira em Porto Alegre: o roubo dos pertences de pessoas em situação de rua por parte da Prefeitura e da Brigada Militar (PM do Rio Grande do Sul).

Ao meio dia de uma segunda-feira, sem que ninguém que passava por perto desse atenção, policiais militares e representantes da Prefeitura, chefiada por Marchezan Júnior (PSDB), ordenaram que trabalhadores do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) recolhessem e jogassem no lixo os pertences de pessoas em situação de rua em uma praça.

Em meio a uma pandemia e no início do rigoroso inverno gaúcho, a Prefeitura Municipal e o Governo Estadual (ambos chefiados pelo PSDB) estão alinhados em mais um aspecto: gastar milhões de dinheiro público em propaganda sobre ficar em casa, mas não investir nada em habitação e tratar a população em situação de rua com descaso, desprezo e falta de humanidade.

O Jornal A Verdade questionou um dos representantes do município presentes na ação sobre qual órgão da Prefeitura estava coordenando a ação e quais eram os planos do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) para as pessoas que estavam sendo removidas. Ele se recusou a responder e se limitou a dizer “tá com pena, leva pra casa”.

Carolina (nome fictício), que ocupava um dos barracos desmontados junto com seu companheiro e dois filhotes de cachorro, falou com A Verdade sobre a situação pela qual havia acabado de passar:

Houve algum tipo de aviso por parte da Prefeitura sobre a ação que ocorreu?

Não, eles nunca avisam que vão nos tirar. Se a gente não está na barraca, eles levam tudo: documento, comida, não deixam a gente com nada. Não dão nenhuma referência pra gente se abrigar novamente, nada. Se tu tá dormindo, eles te acordam e falam assim “pega o que vocês puderem, que o resto a gente vai levar tudo”.

E quantas vezes vocês já passaram por essa situação?

Muitas. Acontece sempre. Em um ano, tu passas por isso mais de dez vezes. Pra ter uma noção do estrago que eles fazem. Não dão nenhum tipo de ajuda, de assistência, nada. Em nenhuma das vezes a Prefeitura nos indicou para algum lugar. O “pessoal” é que traz roupa, coberta, calçado, até ração para os cachorros. O dia que a Prefeitura falar na minha frente que fez alguma coisa pelos moradores de rua, eu vou ser a primeira a abrir a minha boca e debater com eles, pode ter certeza! Porque eles não fazem nada pela gente!

Há quanto tempo vocês estavam aqui?

A gente estava aqui na praça faz um mês. Mas eu já estou na rua há dois anos. Nesses dois anos, eu já passei por muita coisa. A gente leva muito tempo para montar uma barraca dessas. Não fica perfeito, mas para não chover dentro e o vendaval não levar, demora quase um mês. Fora que às vezes a gente leva quase um mês pra conseguir uma lona. Hoje, como levaram a nossa lona, não vamos ter nada sobre nossa cabeça. Para destruir eles levam minutos.

Como é para a população em situação de rua enfrentar essa situação de pandemia, se a propaganda do governo é para ficar em casa?

Nós somos excluídos. Para a sociedade, não somos pessoas. Somos chamados de mendigos, de drogados. Na rua a gente é mais um. E quem trouxe esse vírus é quem tem dinheiro. Aqui ninguém vai pra Itália, pra Estados Unidos, pra nada. E a gente é quem sofre. Quem mora na rua é muito unido. Quando um tem um pouquinho a mais, divide com os outros e, assim, a gente vai levando. Cuidando uns dos outros. É o único jeito.

Uma Política de Descaso

Historicamente a população em situação de rua tem aumentado na maior parte das cidades brasileiras. Porto Alegre não é diferente. A partir de um contrato entre a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um grupo de pesquisadores realiza, desde 2007, o censo dessa população, registrando que o número de pessoas vivendo sem um teto nas ruas da cidade passou de 1.203, no ano de 2007, para 2.115 adultos, em 2016, ano da última edição da pesquisa. Ou seja, houve um aumento de 75,8% no número de pessoas vivendo em situação de rua. A própria Fasc informou à mídia burguesa (matéria de 23/03/2020 do portal Gaúcha ZH) que, de janeiro de 2019 até janeiro de 2020, abordou 2.679 pessoas em situação de rua, indicando o aumento contínuo de pessoas vivendo embaixo de marquises, viadutos ou em barracas improvisadas em praças e vias públicas.

Um retrato do descaso e das mentiras é o Plano Municipal de Superação da Situação de Rua, um programa que buscava desde a mudança na forma com que as pessoas em situação de rua são abordadas pelos agentes públicos até o auxílio para que os beneficiados alcançassem a autonomia na manutenção de uma moradia.

As constantes “remoções humanas” (como a Prefeitura nomeia o ataque registrado nesta matéria) estão aí para provar que nada está sendo feito a partir desse plano. Servidores da Prefeitura, Guarda Municipal, Brigada Militar e, algumas vezes, servidores da Fasc, costumam participar das ações, mas ninguém sabe dizer qual o destino das famílias que são atacadas e têm seus pertences jogados no lixo. A resposta é simples: as pessoas continuam na rua.

Resolver essa situação depende de uma política habitacional baseada no direito do cidadão a uma vida digna. Ao menos isso é o que se espera do cumprimento da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre. O artigo 147 estabelece que, nos termos das Constituições Federal e Estadual, e da própria Lei Orgânica, “é responsabilidade do município a promoção do direito à habitação, além dos direitos à cidadania, educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, transporte, entre outros”.

Porém, para a Prefeitura é como se não existissem leis que estabelecem as diretrizes para uma política pública habitacional. Marchezan Júnior simplesmente ignora a lei ao contribuir para que as pessoas continuem sem teto. O prefeito faz com a lei o mesmo que tem feito com a população em situação de rua: finge que não vê ou a desrespeita.