Serley Leal
FORTALEZA (CE) – Diante da segunda nova onda do novo coronavírus, o jornal A Verdade entrevistou novamente o médico patologista Tiago Magalhães Gurgel. Ele é chefe de equipe da Emergência no principal hospital privado de Fortaleza, Ceará. Tiago é diretor do Sindicato dos Médicos do Ceará e membro da Unidade Popular. Sete meses após nossa primeira conversa, ele fala sobre a triste realidade da Covid-19 no Brasil, denuncia a política criminosa do governo com a saúde do povo brasileiro e adverte que até que a vacinação gere imunização, a prevenção é a saída.
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Oficialmente, já morreram mais de 170 mil pessoas no país. Você considera que os governos agiram e estão agindo para conter a pandemia? Chegamos a mais de 6,2 milhões de casos confirmados e mais de 170 mil óbitos. Isso é o resultado da política que foi implementada de uma reabertura forçada e acelerada com o calendário eleitoral. O governo divulgou que gastou mais de R$520 bilhões com a pandemia, pouco mais de R$50 bilhões foram para o Ministério da Saúde. Apesar desses enormes montantes executados, existe uma enorme confusão e desorganização no combate. Não houve uma ação coordenada por parte da União, Estados e Municípios. Precisamos nos questionar se esse enorme gasto realizado com essa quantidade de mortes foi algo eficiente. Não dá para aceitar isso de forma simples, ainda mais que os valores diretamente gastos com saúde representam muito pouco do total. Outra desordem foi que todos os estados desativaram a maior parte dos leitos de tratamento da Covid-19, acreditando que a chamada “imunidade” da população chegaria e não se precisaria mais desses equipamentos. Dados do Conselho Federal de Medicina mostram a falta de leitos do SUS perto de 18 mil, mas uma enorme quantidade foi desativada. Não foi pensada uma política permanente de manutenção desses leitos, mesmo o SUS necessitando deles. A política adotada pelos governos, principalmente do Governo Federal, é criminosa.
O Governo Federal diz que não tem interesse em comprar algumas das vacinas que estão sendo testadas e muitas pessoas questionam a eficácia delas. Como avalia a postura do presidente nesse movimento antivacina? Eu queria começar ressaltando a importância das vacinações de maneira geral. Por ano, as vacinas salvam cerca de três milhões de vidas aqui no Brasil. Para termos uma ideia do que isso representa, a estimativa é que, por exemplo, de 2015 a 2020, 20 milhões de pessoas não adquiriram o sarampo por conta do programa nacional de imunização. A varíola, erradicada em 1977, durou cerca de um século de existência e foi uma doença que levou à morte 300 milhões de pessoas. Essa é a magnitude da importância das vacinas. Alguns fazem o movimento antivacina, com teorias conspiratórias, mas isso é tolice. Uns por má-fé, outros por ignorância, não levam em conta realmente o poder que a vacina tem, a quantidade de vidas salvas. As vacinas para serem aprovadas cumprem rigorosos protocolos de estudo. Na verdade, o Governo Federal quer dar preferência às multinacionais norte-americanas para as vacinas, em virtude do seu alinhamento político. Portanto, vai falar mal das outras, principalmente se for de origem chinesa ou russa para fazer esse jogo ideológico burro da extrema-direita. O que gera muita preocupação é o apoio do governo e seus fascistoides às mentiras que questionam a eficácia das vacinas de uma forma geral. O presidente está muito mais preocupado com interesses de determinados grupos econômicos, do que propriamente em defender a vida da população.
Quais novas características já se conseguiu aprender desse novo coronavírus e quais tratamentos estão mais adequados? Tudo ainda é muito novo, tudo está sendo estudado, estão sendo observadas as mutações, contágio, quadros graves, etc. Sobre o contágio, por exemplo, existem relatos de vários animais que podem servir como vetor de contaminação para humanos. Temos que seguir acompanhando com muita cautela. Sobre tratamentos, ainda não existe um tratamento definitivo. Foram tentadas várias drogas com perspectiva de ação antiviral, mas sem sucesso. O que sabemos é que, quando há necessidade, algumas medicações fazem diferença, como corticoides, como anticoagulantes por conta de eventos trombóticos, causados pela inflamação da Covid. Mas não existe um tratamento direcionado, como, por exemplo, se eu tenho uma pneumonia, eu tomo antibiótico. outro tratamento, até em caráter experimental e de exceção, é a utilização do chamado plasma convalescente, ou seja, a gente usa anticorpos de pessoas que já tiveram a doença pra tratar os casos mais graves. Então, realmente, a melhor perspectiva que nós temos são os cuidados gerais do distanciamento, da etiqueta respiratória, de evitar as aglomerações, ou seja, evitar a exposição. O melhor cuidado é a prevenção. Por outro lado, também se aprendeu muito sobre o suporte de oxigenação, que, no começo existiam várias dúvidas de como fazer, e pressionaram bastante a rede de saúde pela necessidade de leitos de UTI. Já se tem outras tecnologias, outras formas de tratamento que têm evitado a internação na UTI com a ventilação mecânica. Até que a vacinação gere imunização, evitando o contágio, a prevenção é a saída.
Estamos numa nova onda da pandemia? A segunda onda é uma realidade. Inclusive, quando a gente olha em números, os vários gráficos dos países mostram que a primeira onda parece uma marolinha frente ao que está sendo a segunda onda. Um aumento muito grande em países como França, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, enfim, os países que passaram pela situação de pandemia um pouco antes do Brasil. O Brasil, como é um país continental e tem várias peculiaridades, tem locais que já tiveram a primeira onda, diminuiu e voltou a aumentar, tem outros locais que ainda estão tendo a primeira onda e agora que estão diminuindo. Então, assim, a gente pode falar de segunda onda no Brasil porque os locais que já tiveram, voltaram a aumentar, como os exemplos de São Paulo, Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Bahia, aqui mesmo no Ceará. Infelizmente, como coincidiu com o período eleitoral, houve um silenciamento das autoridades e um silenciamento dos órgãos judiciais, da imprensa. Fora a enorme pressão da classe empresarial que queria a todo custo a reabertura, mesmo sabendo dos riscos. Os dados demonstram que as pessoas mais vitimadas dependiam do transporte público, tinham que ir trabalhar e foram levadas pela reabertura. A omissão do Governo Federal e do Ministério da Saúde é criminosa. Não atua, não coordena, não propõe, apenas executa a vontade do presidente, que foi de ter a reabertura econômica a qualquer custo.
A pandemia revelou uma face terrível da desigualdade social, então? Sem dúvidas. Os ricos ficaram mais ricos nesta pandemia e quem mais sofreu foram os pobres, os assalariados, os informais e os pequenos empresários. Uma demonstração muito clara de que, apesar das mortes e doentes, de todo apelo que se fez, do desastre na economia, os mais ricos, os mais abastados, tiveram aumento na sua fortuna. E isso não é achismo, não é palpite, são levantamentos. Tem um levantamento da Oxfam demonstrando exatamente o ganho desses bilionários no Brasil, na América Latina e no mundo afora. Pouco importam as perdas das vidas humanas, o importante é manter a estrutura política e os ganhos da classe rica a qualquer custo. De sorte que não dá pra esperar da parte dessas pessoas os devidos investimentos, aumentando a estrutura e melhorando a saúde pública. Então, o que cabe realmente é a organização dos movimentos populares, do movimento sindical, para exigir que o Governo tome as medidas necessárias. As conquistas são o resultado da pressão popular, exigindo medidas para manutenção das vidas. O lucro não pode estar acima da vida. Um exemplo foi Fortaleza: aqui, na primeira fase, existiam dois gráficos, o gráfico dos casos e o gráfico das mortes. Apesar dos casos, no começo, estarem mais concentrados nas áreas nobres, as mortes se concentram na periferia. Por quê? As pessoas das periferias ao saírem para trabalhar nas áreas nobres se contaminaram. Como nossa estrutura social é muito precária, as condições das pessoas mais pobres são terríveis, acabaram se expondo e levando a doença para dentro da família. Se não houver ações reais para proteger a vida das pessoas, a classe trabalhadora, a classe sofrida do nosso país será dizimada.
O isolamento social foi atacado bastante pelo Governo Federal. Ainda temos muitas pessoas morrendo. Quais os impactos que teremos se diminuirmos as medidas de distanciamento? Na primeira entrevista, há pouco mais de seis meses, eu afirmei que as ações bem sucedidas se baseavam em rastreio e contenção. Isso fez com que os casos realmente fossem muito menores onde foi aplicado. Fora o rastreio e a contenção, você também tem que ter a colaboração da população. Quando analisamos os dados e comparamos o que foi a primeira com a segunda onda nos países que já sofreram muito, parece que não aprenderam nada. Não têm sido respeitadas as medidas de proteção, as medidas de distanciamento, a etiqueta respiratória, os assintomáticos usarem máscara. Ora, isso é culpa somente da população? Não. Porque é preciso manter permanente campanha de conscientização. Mas não somente isso. Uma máscara cirúrgica, que custava poucos centavos, hoje custa alguns reais, em média três reais, houve um aumento de 10 a 30 vezes o valor de base deste insumo básico. O Governo deixou a lei do livre mercado imperar, não houve ampla aquisição ou ampla distribuição para a população. Os governos deveriam garantir as máscaras para as pessoas, principalmente dos setores essenciais. Deveriam aumentar a oferta do transporte, e não diminuir como de fato ocorreu. Além de ser adequadamente higienizado, ventilado. Os governos, particularmente o Governo Federal, decidiram manter a máquina da economia rodando e quem tiver que morrer “paciência”, “não sou coveiro”. São governos ineficientes, incapazes, sem coordenação, deu no que deu: um verdadeiro desastre. Eu digo pra pessoa que não tem emprego, que não tem renda, que ela fique em casa, ela vai viver de quê? Ela vive num casebre, aglomerada, vive numa condição precária. E eu vou dizer pra essa pessoa sobreviver, como? É necessário manter sim distanciamento, mas o governo deveria ajudar, o que não está ocorrendo, para controlar o fluxo de pessoas. O distanciamento garante uma menor propagação. O governo foi na direção oposta: parece que estimula os mais velhos morrerem. Você deixa tudo funcionando normal como se fosse a seleção natural, onde os mais resistentes é que vão sobreviver. Essa lógica é genocida. Os relatos que temos é que quando o idoso adoeceu, tendo mais de setenta anos e já fosse um idoso doente, o hospital já ia fazer cuidados de fim de vida, cuidados de conforto, aplicação de morfina e coisas do tipo. É uma forma de eutanásia, muitas pessoas foram sentenciadas e não salvas. É triste, mas está sendo real.