João Montenegro
Publicado em 1847, a Miséria da Filosofia, apesar de ser uma obra pouco analisada do pensamento marxiano, contém grandíssimas contribuições à teoria social marxista. O livro, cujo próprio título expressa uma ironia crítica, foi escrito com o intuito de polemizar com “Filosofia da Miséria. Sistema das Contradições Econômicas” de Pierre-Joseph Proudhon – até então o mais influente dos socialistas franceses.
A brochura é um dos primeiros textos publicados após a “virada materialista” de Marx, virada esta que foi fruto de um longo processo de evolução de seu pensamento e cuja primeira exposição foi sintetizada na redação, junto à Engels, d’A Ideologia Alemã. Tendo em vista que os cadernos que compõem A Ideologia Alemã só foram publicados pela primeira vez em 1932, a Miséria da Filosofia contém então uma importância histórica ímpar, pois é em meio às suas páginas que se encontra uma das primeiras exposições públicas e sistematizadas do que é o materialismo histórico de Marx e Engels.
Marcando permanentemente as divergências conceituais e políticas do socialismo marxista frente ao socialismo pequeno-burguês representado na figura de Proudhon, A Miséria da Filosofia é uma crítica impiedosa que não só reduziu a pó o arcabouço conceitual proudhoniano mas também pôs um fim definitivo a conflituosa relação entre ambos autores. Entretanto, tal ruptura já era esperada. Como escrevera Proudhon em carta à Marx: “espero a sua férula crítica” [1], contudo, o socialista francês jamais respondeu ao livro, tendo-lhe reservado somente algumas zombarias através de cartas à seu editor. Mas as notas que escreveu em sua edição do livro demonstram a elevada importância que atribuiu às críticas realizadas pelo comunista alemão. [2]
A respeito da estrutura do escrito, a primeira parte é caracterizada por ser uma das investidas iniciais de Marx no campo da economia política, constituindo-se assim, apesar das revisões e/ou reformulações posteriores de várias categorias presentes no livro, um texto fundamental para compreender as bases de sua crítica à economia política. Já a segunda parte, mais filosófica, contém alguns dos principais méritos do texto, pois nela estão legadas valiosas e raras contribuições dadas por Marx sobre o método dialético. Este último aspecto será aqui brevemente debatido.
Marx contra Proudhon
Marx critica abertamente a oscilação entre o idealismo e o materialismo, bem como a aplicação equivocada da dialética hegeliana por parte de Proudhon. Há para Marx, no socialista francês, enquanto típico representante ideológico da pequena-burguesia, um espírito ambíguo, conflitante, ou seja, que se expressa enquanto filósofo especulativo e economista político, afinal, “ele quer planar como homem de ciência acima dos burgueses e dos proletários; e não é senão o pequeno-burguês, oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo” [3]. Concomitantemente, Marx exprime, com o rigor teórico que lhe é particular, a necessidade de partir de premissas reais, isto é, do estudo das relações materiais estabelecidas entre os indivíduos, para somente em seguida, poder conhecer as diferentes categorias econômicas bem como suas relações recíprocas. Nas palavras do próprio Marx:
As categorias econômicas não são senão as expressões teóricas, as abstrações das relações sociais da produção. O sr. Proudhon, como verdadeiro filósofo, tornando as coisas pelo avesso, não vê nas relações reais senão as encarnações destes princípios, destas categorias, que dormitavam, diz-nos ainda o sr. Proudhon filósofo, no seio “da razão impessoal da humanidade”. [4]
Parte-se então, do real para o ideal. Tal premissa essencial do materialismo marxista, implica o profundo reconhecimento da historicidade de todas as diferentes formas sociais e categorias econômicas que delas derivam. Dessa forma:
As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho de mão dar-vos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial. Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com suas relações sociais. Assim, estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Há um movimento contínuo de aumento das forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável não existe senão a abstração do movimento — mors immortalis. (Grifo nosso) [5]
Há aí, portanto, a crítica a duas conceituações filosóficas que encontram-se presentes no livro de Proudhon, a saber: a primazia das ideias e a sucessão lógica na apreensão dos acontecimentos. Como gaba-se o próprio Proudhon:
“Nós não fazemos uma história segundo a ordem do tempo, mas segundo a sucessão das ideias. As fases ou categorias econômicas são, na sua manifestação, às vezes contemporâneas às vezes intervertidas… As teorias econômicas não têm menos, por isso, a sua sucessão lógica e sua série no entendimento: é esta ordem que nós nos gabamos de haver descoberto” [6]
A este modo de proceder metodológico, de inspiração hegeliana e pretensamente dialético, Marx contrapõe-o, afirmando:
As relações de produção de toda sociedade formam um todo. O sr. Proudhon considera as relações econômicas como outras tantas fases sociais, engendrando uma a outra, resultando uma da outra como a antítese da tese, e realizando na sua sucessão lógica a razão impessoal da humanidade. O único inconveniente que existe neste método é que, abordando o exame de uma única destas fases, o sr. Proudhon não possa explicá-la sem recorrer a todas as outras relações da sociedade, relações que, contudo, ele ainda não fez engendrar pelo seu movimento dialético. Quando, em seguida, o sr. Proudhon por meio da razão pura, passa à criação das outras fases, ele procede como se tratasse de crianças recém-nascidas, esquecendo-se de que são da mesma idade que a primeira. Assim, para chegar à constituição do valor, que para ele é a base de todas as evoluções econômicas, não podia dispensar a divisão do trabalho, a concorrência, etc. Contudo, na série, no entendimento do sr. Proudhon na sucessão lógica, estas relações ainda não existiam. (Grifo nosso) [7].
Ou ainda:
Quando se constrói com as categorias da economia política o edifício de um sistema ideológico, os membros do sistema social são deslocados. Os diferentes membros da sociedade são transformados em outras tantas sociedades à parte, que chegam umas depois das outras. Como, com efeito, poderia a fórmula lógica do movimento, da sucessão, do tempo, explicar sozinha o corpo da sociedade, no qual todas as relações coexistem simultaneamente e se sustentam umas às outras? [8]
Portanto, tal “sucessão lógica no entendimento” que advoga Proudhon, não faz sentido senão através de abstrações, tendo em vista que nas relações concretas as coisas se expressam de modo diferente. Mais ainda: nos trechos acima destacados, Marx expõe dois conceitos fundamentais para compreensão não só de seu itinerário teórico, como também do próprio movimento do real. Sendo o primeiro deles o conceito de totalidade, isto é, que as relações de produção bem como suas expressões ideais etc, formam um conjunto intrincado e intimamente articulado de tal maneira que não é possível compreender uma instância social abdicando de sua relação com as demais, como inconscientemente pretende Proudhon.
Deriva-se daí, uma segunda conclusão metodológica muito cara ao marxismo: a noção de influência recíproca e dialética das diferentes categorias, instâncias e processos de um determinado modo de produção. Diferentemente do que enseja Proudhon, que apesar das pretensões dialéticas ainda preserva uma compreensão estanque da sociedade; Marx vê nas relações sociais um todo cujas interações recíprocas, em um movimento dialético, impulsionam constantes transformações. Transformações estas que são condicionadas, mas jamais determinadas, pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas. Assim, percebe-se então a simploriedade das acusações de um pretenso economicismo ou determinismo em Marx.
Através da exposição acima, evidencia-se que as passagens presentes na Miséria da Filosofia acerca do método científico dialético constituem uma contribuição de primeira importância à teoria social marxista, uma vez que lhe fornece um arcabouço conceitual consistente cujas premissas se assentam em relações reais estabelecidas por sujeitos reais. Se, como bem pontua Lênin, “a análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo” tão importante quanto ela é a compreensão científica dos meios que devem ser utilizados para sua realização.
Fontes
- Sobre Proudhon – Carta a J. B. Von Schweitzer. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1865/01/24.htm
- Miséria da Filosofia – Introdução. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/intro.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Sétima e última observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Segunda Observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Segunda Observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Primeira Observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Terceira Observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm
- Miséria da Filosofia – Cap. II Terceira Observação. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap04.htm