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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

“A Mãe” e a percepção da mulher

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REALISMO – “A Mãe” é uma das principais obras de Maximo Gorki, um dos precursores do realismo socialista na URSS (Foto: Reprodução)

Beatriz Contelli

SÃO PAULO“Pavel lembrou-se da existência apagada e silenciosa da mãe, quando era vivo o pai, quando ela vivia na espera angustiante das pancadas.” Com trechos densos e relatos dramáticos, A Mãe, de Máximo Gorki, apresenta um retrato da luta revolucionária russa a partir da ótica familiar e do mundo dos operários e camponeses.

Nascido na Rússia de 1868, Gorki viu de perto o semi feudalismo de seu país, com a população subjugada pela pobreza e condenada ao analfabetismo. Primeiro presidente da União dos Escritores Soviéticos, o autor viria a ser um dos precursores do realismo socialista, em que teatro, literatura e artes visuais deveriam ter compromisso com a educação e formação do povo trabalhador.

Em pouco mais de 460 páginas, “A Mãe” expõe ao leitor a situação degradante dos trabalhadores na Rússia czarista, que vistos como escória humana, eram devorados pelas máquinas e enfrentavam a miséria da existência. “Acostumados a serem esmagados pela vida com uma força constante, não esperavam nenhuma melhoria e consideravam que todas as alterações só tornariam o seu jugo ainda mais pesado.”

Mais humilhante ainda era a condição da mulher. Apesar do trabalho da mulher pobre ter sido incorporado nas fábricas, a mesma recebia salários menores e não se viu livre do trabalho doméstico. Responsável pelos cuidados do lar e pela criação dos filhos, a mulher não encontrou autonomia financeira e enfrentava o tormento da violência doméstica.

Com uma cicatriz profunda na sobrancelha direita e “um corpo quebrado pela labuta incessante e os murros do homem”, Pelagueia Vlassova – muitas vezes referida apenas como ‘mãe’ – é a personagem principal da obra aqui avaliada. Retratada como uma mulher semianalfabeta, vítima dos abusos do marido e mãe de um dos principais contestadores do regime russo então vigente, a personagem conduz o leitor a um passeio pelos seus medos, descobertas e atuação ao lado dos socialistas.

Apesar de compor uma obra escrita em 1907, Pelagueia representa não só a mulher de sua época, mas também a mulher dos dias de hoje. Atravessada pelas relações de poder e dominação, a classe trabalhadora tem dois sexos: “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher”, escreveria Friedrich Engels.

Do contrário, como podemos explicar que, no Brasil, 47,8% das mulheres pretas estão na informalidade? Como explicar que das 5,7 milhões de empregadas domésticas, somente 27% delas têm carteira assinada? Como explicar que as mulheres continuam a trabalhar 20 horas por semana em afazeres do lar, consistindo no dobro das horas dedicadas pelos homens?

Mulher cheia de doçura e timidez, espancada pelo pai e pelo marido, a personagem da mãe espelha a realidade de muitas mulheres de nosso século. Em 5° lugar num ranking de 83 países onde mais se matam mulheres, o Brasil registra 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, em que quase 30% dos crimes ocorrem na própria casa da vítima.

Imersa na ignorância, a mãe enxerga-se à parte do universo do filho, que com o correr do tempo usava palavras que ela não compreendia. Em 1897, menos de um terço dos russos eram considerados alfabetizados, sendo apenas 13% mulheres. O analfabetismo resiste no mundo e ainda é mais comum entre as mulheres: no Brasil, estima-se que em mulheres com mais de 60 anos, a taxa de analfabetismo é de cerca de 27,4%, enquanto que nas mulheres pretas nessa faixa etária a taxa chega a 42,2%.

“Temos que estudar, todos nós operários. Temos que saber, temos que entender a razão de a vida ser tão dura para nós.” Apesar de fazer críticas ao sectarismo e egocentrismo presente no partido socialista, de abordar a visão do povo trabalhador de forma tão atual, A Mãe é, antes de tudo, uma pintura exata da opressão vivenciada pela mulher.

Com uma história que combina o real e o fantástico, as páginas de A Mãe transpassam ao leitor uma emoção profunda que vai muito além de mera simpatia e compaixão pelos personagens. Gorki nos faz compreender as dores de uma mãe, nos mostra as penúrias impostas à classe trabalhadora da cidade e do campo, nos ensina o que é ser socialista e nos força a lembrar que a violência doméstica, o analfabetismo e a exploração da mulher ainda persistem.

Em A Mãe, o povo desperta do seu sono secular, intelectuais e iletrados formam um laço sólido e toda esta gente, que representa a realidade de ontem e de hoje, existe e existirá enquanto a luta libertadora não chegar.

“Viva a liberdade de expressão, viva o coração das mães!”

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