Jossely Oliveira
Autismo é uma condição do neurodesenvolvimento cuja configuração é determinada já no processo de fecundação e formação do feto. Por causa dessa configuração diferenciada que afeta em graus diversos o comportamento, a socialização e a comunicação, a pessoa autista percebe e processa o mundo a sua volta de forma atípica.
O nazismo foi um regime racista que pregava a superioridade da raça ariana, o ódio e o extermínio de judeus, bem como de grupos diversos, como ciganos, negros, homossexuais e pessoas com deficiência.
E o que os dois parágrafos acima têm em comum? Autismo é uma deficiência e foi exatamente nesse início do século XX, em contexto de primeira e segunda guerras mundiais, que a condição começou a ser identificada e descrita a partir da observação clínica de pessoas com condições psiquiátricas. Eugen Bleuler, em 1908, e Leo Kanner, em 1943, foram os primeiros a usarem o termo autismo. Em 1944, Hans Asperger estuda um grupo de crianças que, além de terem as características observadas por Bleuler e Kanner, também apresentavam altas habilidades. Tal perfil levou ao surgimento do termo Síndrome de Asperger.
Desde a publicação da quinta e mais recente versão do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), em 2013, o termo Síndrome de Asperger foi descartado e pessoas com esse diagnóstico passaram a ser incluídas no diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Porém, tal diferenciação ainda se encontra na edição 10 da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Sua alteração está prevista para 2022, incluindo a Síndrome de Asperger e “outras versões” de autismo no termo Transtorno do Espectro Autista.
Faço toda essa contextualização pelo simples fato de o aspecto “altas habilidades” no diagnóstico de Síndrome de Asperger ser a razão de muitos autistas e pais de autistas com esse diagnóstico insistirem nesse aspecto para se colocarem como “especiais”, “diferenciados”, de “alto funcionamento”. É uma visão capacitista que passa a ideia de superioridade de um grupo em relação ao outro.
Segundo Anahí Guedes de Mello, antropóloga brasileira, essa visão capacitista tem em sua origem profundas raízes na antiga civilização greco-romana, quando havia uma generalização consentida do infanticídio, seja por razões de ordem econômica (por exemplo, impossibilidade de sustentar a criança) ou por considerar socialmente inviável a sobrevivência de crianças recém-nascidas com alguma deficiência. Nesse sentido, a manifestação da deficiência lesiona o ideário eugênico de corporeidade grega tão intimamente enraizado em nós. Porém, no início do século XX, vemos o capacitismo em crianças autistas e com outras deficiências sendo levado às últimas consequências pelo regime nazista, segregador por essência.
Nos últimos anos, historiadores têm investigado documentos da clínica de Hans Asperger durante o regime. Apesar de não ser filiado ao partido nazista, o pediatra austríaco tinha muita influência no alto escalão, a ponto de coordenar grupos de médicos que atendiam ao regime.
Em 2018, a historiadora estadunidense, Edith Shaffer, especialista em História da Alemanha e da Europa Central, publicou o livro As Crianças de Asperger: as origens do autismo na Viena nazista. O livro traz registros de crianças que foram avaliadas na clínica de Hans Asperger, por médicos e enfermeiras, além do próprio Asperger. Há provas inquestionáveis que Hans Asperger julgava as crianças autistas com altas habilidades como “úteis para viver”, por isso enviadas para reabilitação, e aquelas que não atendiam a esse critério sendo enviadas para a eliminação no Spiegelgrund, um dos mais letais centros de extermínio de crianças do Reich. Vale ressaltar, que o viés de gênero também estava presente nos protocolos clínicos de observação e reabilitação. O que poderia ser visto como genialidade em meninos, era visto como aberração em meninas.
Milhares de crianças foram mortas pelo regime nazista por não terem suas diferenças acolhidas, a ponto de serem consideradas inúteis para continuarem vivendo. Estamos em tempos ameaçadores da existência das diferenças em sociadade. Exemplo disso ocorreu em outubro de 2020, quando Bolsonaro assinou o decreto 10.502 que traria de volta a segregação através das escolas especiais como o lugar ideal para as crianças com deficiência. Esse decreto marcava um imenso retrocesso na luta por inclusão. Graças à mobilização de comunidades representativas de pessoas com deficiência, o decreto foi anulado pelo STF em dezembro de 2020.
A luta anticapacitista tem denunciado o padrão da corponormatividade que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos – e a mente faz parte do corpo, lembrando que autismo é uma condição que se manifesta nesse campo devido a uma configuração cerebral atípica e diversa. Ainda segundo Mello, a corponormatividade é uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais etc.), aproximando as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais, como o sexismo, o racismo e a homofobia.
Concluo sugerindo a leitura de excelente artigo publicado por esse jornal em seu site, intitulado O Marxismo e o (anti)capacitismo, escrito por Acauã Pozino, pessoa com deficiência. Nele, Pozino convoca a militância para a construção de um pensamento marxista anticapacitista, uma vez que, em suas palavras, “como a moral burguesa se desenvolve a partir do paradigma da produtividade, sobretudo do lucro, constrói-se uma superestrutura que concebe essas pessoas como desabilitadas, como inaptas, seja para a produção material, para a produção intelectual ou para sua própria autodeterminação.”
É urgente unirmos forças na luta por uma sociedade mais justa e inclusiva, numa época em que nossos direitos são ameaçados e, principalmente, pelo fato de termos na presidência alguém que flerta com o nazifascismo e estimula parte da população a cultivar sua visão do diferente como aberração.
Jossely Oliveira, autista e militante da Unidade Popular na Paraíba
REFERÊNCIAS:
SHEFFER, Edith. As crianças de Asperger: as origens do autismo na Viena nazista. São Paulo: Editora Record, 2019.
MELLO, Anahi Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2016, vol.21, n.10, pp.3265-3276. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016
POZINO, Acauã. O Marxismo e o (anti)capacitismo. Site A Verdade, 2020. Disponível em <https://averdade.org.br/2020/08/o-marxismo-e-o-anticapacitismo/> Último acesso em: 28/03/2021.
Só para complementar, Sukhareva caracterizou o espectro autista antes de Asperger e Kanner
https://www.spectrumnews.org/features/deep-dive/history-forgot-woman-defined-autism/