“Os relatos fortes dessas duas mulheres que escaparam da morte e lutam todos os dias para voar em céus abertos à liberdade nos renova as energias para seguir lutando por um outro tipo de sociedade, o socialismo.”
Denise Maia
RIO DE JANEIRO (RJ) – Mulheres que choram, riem, procriam, amamentam, se cuidam e se descuidam. Na queda seguram a cria. Na fome alimentam o filho. No desabrigo acolhem o vizinho. Fortes, frágeis, amparam no colo, mesmo que, às vezes, o desejem com todo o amor.
São tantas as construções de sentimentos, atitudes, embates e defesas, que a gangorra da vida as obrigam a renascer diariamente.
Para homenagear essas mulheres, o jornal A Verdade conversou com Solange Pires Revorêdo e Roseni Maria Pereira Queiroz, que simbolizam a luta feminista contra a violência, o machismo e por uma vida livre.
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“17 anos num relacionamento abusivo”
Começamos por Solange: “Um dia meu marido chegou do trabalho e ficou irritado com o patinete dos meus filhos, que estava fora do lugar. Começou a gritar, a dizer que eu era relaxada. Veio na minha direção, me empurrou e eu disse: ‘larga de ser covarde, não faz isso, não vai começar’. Na hora que eu falei, ele já estava em cima de mim. Então ele me deu uma testada na cara. Quebrou o osso do meu nariz e o sangue começou a esguichar como num filme de terror. Meu filho mais novo, de quatro anos, assistiu tudo. Fiquei sem ar e desmaiei. Quando acordei, estava na sala, já com a roupa trocada e banho tomado. Em vez de me levar para o hospital, ele lavou a cozinha”.
Solange conta que a dependência financeira do marido foi um dos motivos que a impediram de se libertar antes. “Sempre dizia que eu pagava para trabalhar, que gastava quase tudo com passagem. Ele tinha um salário bem maior e como era dez anos mais velho, acabou me convencendo. Também não gostava que eu tivesse contato com a minha família, nem com amigas. Foram 17 anos nesse relacionamento abusivo. Anos depois, quando fui fazer terapia, descobrimos através de um gráfico da violência sofrida que o Paulo me batia, em média, a cada três meses, com tanta truculência como se fosse me matar. Depois, vinha a lua de mel. Achava que tinha condições de mudar a situação. Pra mim, casamento era para sempre”.
Por conta dos caminhos percorridos para se libertar, Solange sentiu necessidade de amparar, com sua experiência, outras mulheres. Assim surgiu o Grupo de Apoio às Mulheres (Gram), que atende 230 mulheres em todo o país e conta com mais de cem colaboradores, entre professores, policiais, delegadas, psicólogas, assistentes sociais e profissionais de diversas áreas.
“Passei a conhecer a violência física, patrimonial, moral, psicológica, emocional. Há dez anos estou livre desses abusos. As vítimas, muitas vezes, ficam sem opção de sair desse quadro de violência”, explica.
Depois que percebeu e compreendeu os abusos que sofreu, Solange fez questão de ensinar aos dois filhos sobre todos os aspectos da violência. “É muito mais saudável ter filhos com pais separados do que dentro de uma família com relacionamento abusivo. Temos que desconstruir esse padrão da igreja, da sociedade, que é bonitinho pai, mãe e filho dentro de uma casa, como um comercial de margarina. Isso não existe”, afirma de forma categórica.
“Eu achava que era amor”
Esse mesmo estereótipo do “casamento até que a morte os separe” também aprisionou nossa outra entrevistada: Roseni Maria, moradora da favela do Limoeiro, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, 39 anos, quatro filhos e onze irmãos. Nenhum deles frequentou a escola. Sua mãe sustentava a família lavando roupa pra fora. Ela sonhava em ser advogada, mas atualmente pensa em ser assistente social. “Para ajudar outras mulheres”, explica.
Roseni começou a ser alfabetizada em 2017. Hoje, consegue juntar as palavras para escrever e ler. Conhece as letras e os números. “Aprender a ler é como se você tirasse a sua vista da escuridão”, afirma, emocionada.
E essa vontade de aprender a ler, aliada à perda de um filho de 12 anos, vítima de um tumor cerebral, foi fundamental para que ela se libertasse do agressor. A dor e a esperança a fizeram dar um basta no ciclo de violência. “Meu marido só falava com agressão verbal e muitas vezes física. Eu achava que era amor. Minha mãe viveu isso”.
Com 11 anos, sofreu assédio sexual dos irmãos. Por várias vezes apalpavam o seu corpo enquanto dormia. Mostravam o pênis e, por não corresponder, apanhava até com fio de telefone. A mãe não se importava. Para cumprir sua função de obreira na igreja pentecostal “Deus é Amor”, deixava os filhos sozinhos.
Roseni apanhava também do pai. “Não tive infância. Nunca brinquei de boneca, de bicicleta, e não podia ver televisão. Minha mãe dizia que tudo era coisa do demônio”.
A Luta Liberta
Toda menina que sofre violência quer ser livre. O casamento, para muitas, representa isso. Mas nem sempre é assim. Para Roseni, a violência foi transferida do pai e dos irmãos para o marido, que também cresceu apanhando e assistindo a mãe ser espancada pelo pai, que era pastor numa igreja neopentecostal.
“Meu marido não bebia. Frequentava a igreja evangélica. Rezava, pregava a palavra, mas dentro de casa era essa vida de violência. Teve um dia que ele me bateu muito. Estava com o olho, a boca e os braços muito inchados. Minha sogra e minha cunhada tentaram me ajudar e pediram que ele abrisse a porta da nossa casa. Então, ele disse que eu era sua esposa e que podia fazer o que quisesse comigo”, conta.
O ciclo de violência também chegou à sua filha de dezessete anos, que quase foi estuprada dentro da igreja que frequentavam. Um professor, que dava aula de música para jovens, também quase a estuprou. “O pastor chegou a pedir que eu não fizesse a denúncia. Hoje digo que acredito em Deus e que não preciso de pastor para ter fé”, diz Roseni.
O dia 8 de março de 2017, Dia Internacional da Mulher, ficou marcado na memória e na vida dela. “Disse ao meu marido que desejava estudar e trabalhar. Ele me olhou e disse: ‘você nasceu para qualquer coisa, menos para ser esposa’. Pensei: ‘me dediquei inteiramente a essa casa e aos meus filhos para escutar isso?’. Peguei minhas filhas, levei para a escola e fiz a matrícula para alfabetização. Eu não sabia ver as horas, os minutos! Ainda tenho problema em acreditar em mim. Na minha força. Escutava sempre do meu marido, ‘o que você tem na vida? Trabalhou? Tem nota fiscal? Vai pra casa da sua mãe, o que você está fazendo aqui?’. Depois de tantos anos de violência tomei coragem e saí de casa. Hoje, moro com a minha mãe. Estou levando a vida porque ela segue em frente”, relata.
Os relatos fortes dessas duas mulheres que escaparam da morte e lutam todos os dias para voar em céus abertos à liberdade nos renova as energias para seguir lutando por um outro tipo de sociedade, o socialismo, onde não seja a violência a imperar nos lares, mas o verdadeiro amor e o companheirismo.