Sobre a educação na pandemia

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Stefan Chamorro Bonow*

A crença de que o ensino precisa, urgentemente, retomar suas atividades sob o peso de aumentar o mal que sofre a geração em processo de formação, nos prova a permanência de uma visão limitada e certamente ingênua de educação. Para seus defensores, crianças e jovens perderam e ainda perdem, paradas, mais de um ano de suas vidas porque não se preparam adequadamente para os desafios educacionais do futuro (vestibulares e Enem), não adquirem qualificações que o mercado exige para trabalhar. 

Para essa gente, os professores têm um papel mecânico, possível de ser medido, logo controlado para ter de fazer para merecer ser remunerado. Somente por horas gastas com preparação e transmissão de informações colocadas em manuais, textos e livros, deve-se pagar. Logo, por não estarem executando suas funções básicas nas circunstâncias normais esperadas, através do repasse de informações supostamente valiosas e imutáveis, as professoras e professores vêm se tornando um peso para a sociedade por negarem a proporcionar a qualidade que seus clientes merecem, diante de alguns olhos. Uma espécie de profissional a ser reprovado, com o perdão do trocadilho. 

É como se a cada dia, o trabalho docente fosse o de mostrar onde se encontra e como trazer à tona um punhado de jóias preciosas que atenderão às necessidades de alguém, sempre repetido num ritual constante. Usando para tanto, periodicamente, os mesmos métodos e indo aos mesmos lugares; como se as condições de tempo e lugar não tivessem qualquer relação. Essa é a visão da elite brasileira que vê o investimento financeiro nos seus filhos escoar pelo ralo diante do não atendimento dos programas de conteúdo das disciplinas. Há pais e mães que na prática se tornam criadores de animais de exposição que trarão retorno financeiro no futuro.

Para alguns outros honrados cidadãos, está-se a negar o direito de lugar seguro à juventude, no qual ela possa se abrigar das condições climáticas, da violência urbana e ter uma alimentação digna. Ao que lhes parece, as escolas sempre foram um paraíso perdido, ou milhares de redutos livres de ameaças por sua condição de neutralidade em relação aos problemas do mundo. De certo, o olhar atento deles percebeu, na hora certa, os orçamentos escolares volumosos, por isso cada vem mais diminuídos. Essa é uma interpretação possível em tempos de Cloroquina.

Mesmo que fosse verdade, essa análise é igualmente patética por reduzir a escola a uma série de frases moralistas, ao defender uma educação aos pobres restrita à caridade em relação aos coitados, de responsabilidade de adultos responsáveis que precisam ver a aula como lugar santificado, sob forma de esmola, como um bem maior que se sobrepõe aos problemas sociais e pessoais de quem não se sente seguro retornando ao trabalho assim (sem garantias). Como se fosse culpa do servidor ligado à educação as péssimas condições de emprego, salário, saúde e moradia da maioria da população. Essa perspectiva encara o brasileiro como um ignorante absoluto dependente da ajuda de pessoas boazinhas e prejudicadas por profissionais preguiçosos. 

É isso o que diz certos discursos políticos, como o da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) – pronunciado no dia 14 de abril de 2021. Querem transferir para o trabalhador a culpa dos problemas sociais dos demais trabalhadores e desempregados, que são causados pela exploração, pela retirada de direitos do trabalhador, pela tributação canalha que taxa mais os pobres por focar em tributos menos visíveis como ICMS do que nas rendas das fortunas dos ricos.

A educação consciente, verdadeira, surge do interior da própria sociedade. Negar uma visão de si mesma torna a escola uma parte desconectada do mundo real, torna-a chata em nome de um monte de regras que tenta esconder a sociedade de seus membros. A escola tem a obrigação de trabalhar com aquilo que a sociedade oferece aos seus membros, com aquilo que ela é ou está sendo. O dever da escola é contribuir na descoberta e na explicação daquilo que a sociedade é, para os alunos que nela se encontram. 

Assim sendo, está dito, mesmo que implicitamente, no discurso da própria sociedade que as professoras e professores ainda não são dispensáveis. Não por diferentes setores da sociedade terem membros influentes e movimentos de pressão que exigem o retorno das aulas presenciais, com professores e professoras comportados em sala de aula; admitindo com isso a impossibilidade da substituição do contato humano por tecnologias que acumulam informação e velocidade. A internet, e a banda larga, ainda não nos venceram! É justamente a incapacidade de ver o propósito real da educação (contribuir na constituição de uma sociedade sadia e justa), por parte destas mesmas pessoas e movimentos influentes cujos membros tiveram anos da melhor formação que o dinheiro pode comprar, que o papel da educadora e do educador são essenciais. Ao não ser capaz de olhar o mundo como é, e de apontar soluções para os problemas que este trouxe ao presente, que se admite a necessidade de educar com perspectivas diferentes das atualmente empregadas.

A educação brasileira não funciona. Fato! Ela existe. Persiste para ser mantida nos mesmos padrões, por décadas. Independente do custo humano. Perdura como resultado da ação de quem possui influência e determina seus rumos. É por isso que os objetivos moralistas prevalecem, fazendo com que muitos abandonem as escolas antes do que seria o adequado. Aos que abandonam só resta o trabalho precoce mediante retribuições salariais mais baixas ou o rótulo da vagabundagem, da preguiça como maldição. É por esse moralismo que a gentalha que se intitula cidadã (uma palavra que diz pouco, mas cujo uso orgulhoso faz muito sentido, porque sempre, em qualquer lugar na História humana, o cidadão defensor da sua cidadania sempre foi o detentor do maior número de privilégios que garantiam o seu bem-estar e sua vantagem sobre os demais) vê como inaceitável a ideia de cuidar do bem-estar e da saúde dos outros; claro que isso também na pandemia. A pandemia é, para essa gente, a oportunidade de substituir uma mão de obra mais cara, por outra mais barata, para eles importante em tempos de crise, só que justificada com argumentos morais. 

Existe exceção. A exceção é a escola absurdamente cara, inacessível para mais de 90% da população. Aquela que é feita para ricos que são educados para ter a consciência de seus papéis de ricos, para perpetuar suas condições e ampliar os valores das próprias contas bancárias. Essa é ótima, por ensinar clara e abertamente o papel da classe social de seus membros.

Prevalece no senso comum que nos governa, portanto, um misto de ignorância e moralismo em relação ao sentido da função da educação, mantida por valores tradicionais. Soma-se o oportunismo econômico, em tempos de crise justificado pela ideologia dos mesmos valores que mantêm a visão ingênua da educação. É por isso que bancadas nas Assembleias Legislativas em vários estados votaram pelo retorno das atividades presenciais na educação. Por isso, deputados e deputadas federais da Câmara requerem regime de urgência para apreciação do Projeto de Lei (PL 5595/2020) que dispõe sobre o reconhecimento da Educação Básica e de Ensino Superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais. Proposta de autoria de Paula Belmonte (CIDADANIA-DF) ,  Adriana Ventura (NOVO/SP),  Aline Sleutjes (PSL-PR) e  General Peternelli (PSL-SP).

Cabe uma obrigação àqueles que se dedicam à educação, analisar a realidade vivida na sociedade, debater com seus colegas, divergir e agir em função do que nos atinge agora. E agora há mortes, e cabe à educação a função de contribuir para evitá-las, amenizar os males que a acompanham para produzir uma sociedade mais saudável.

A sociedade atual é aquela que, apesar dos alegados anos de formação dos seus membros proeminentes, não é capaz de produzir médicos em número suficiente para fazer prevalecer a lucidez na explicação do comportamento de um vírus, nem fazer pessoas conseguirem mentalmente imaginar o que seria o perímetro de uma circunferência com raio de um metro. Nosso modelo de educação mantém pessoas tranquilas em suas ignorâncias em perceber que boca e nariz fazem parte do mesmo sistema respiratório. De fato, nosso sistema educacional não tem nada de meritório. Ainda mais por ser o da mesma sociedade que gera pessoas que, através do uso de objetos resultados das mais modernas e atuais descobertas tecnológicas, são capazes de empregar a ciência para popularizar a descrença sobre a própria ciência mais reconhecida (como o fato da Terra ter um formato esférico). Certamente, a educação dessa sociedade não pode ser nada essencial.

A consciência ingênua não permite que a sociedade veja a si mesma por inteira, como ela própria está vivendo e o que faz consigo mesma. Por isso nela persiste uma impressão distorcida sobre sua imagem. O resultado é o de que muitas constatações e diagnósticos estão em completa desconexão com as necessidades verdadeiras. Daí o equívoco que faz com que o sistema educacional funcione de maneira isolada em relação ao que está a sua volta; porque as pessoas instruídas que alcançaram suas posições de destaque no interior desse sistema pensam que devem defendê-lo, para que este possa fazer o mesmo por outras pessoas. No entanto, por alguma razão, aquelas primeiras ignoram ou escondem que alcançaram suas posições porque o sistema é feito assim para não deixar que a maioria progrida em seu interior (e construa vidas dignas e funcionais). Ao eliminar muitos do seu interior, sobra espaço no sistema educacional para aqueles que tem condição boa de vida, que é anterior à educação formal da escola, possuindo bens transmitidos no interior da família, que geram conforto, saúde física e mental, além de cultura geral. Os demais, que não desfrutam do suporte material, e que seguem, conseguem avançar apesar do sistema, mas acham que o fizeram por pura justiça como conclusão dada pelo mérito individual. No entanto, para cada inteligente esforçado de origem humilde que alcança o justo reconhecimento, há muitos milhares semelhantes que se frustram e ficam à margem do caminho.

É fruto dessa visão distorcida, por isso ingênua, o comentário da jornalista Rosane de Oliveira, publicado em um jornal portoalegrense, no dia 13 de abril. Para ela, os profissionais da educação devem ser vacinados com prioridade, mas voltar imediatamente, deixando de lado o corporativismo. Afinal, servidores da saúde nunca pararam, mesmo sem vacina, e trabalhadores do comércio e do transporte público também não, seguindo à frente de seus ofícios.

Tal comentário é típico da perspectiva predominante no jeito de pensar de muitos. Parte de um ponto inicial para chegar em um lugar completamente diferente – mas errado, por ser diferente do planejado. Algo muito recorrente entre estudantes que fazem o cálculo equivocado e assinalam a alternativa correta da pergunta.

Se a realidade é a luta mundial para eliminar a pandemia, em nome da restituição da saúde, é óbvio que as forças mais importantes e aliadas no enfrentamento sejam as de profissionais da saúde; todas e todos, independente da função exercida. Para isso, tais profissionais são os habilitados para saber como trabalhar, tentando proteger a gente enquanto tentam  proteger a si.

A função escolar deveria, indo além da análise e compreensão da realidade, visar fazer isso amparado na abordagem científica. Para isso, afinal de contas, docentes têm sido formados em diferentes campos da ciência, habilitando-se a serem profissionais da ciência e educadores. Se diferentes campos das ciências atestam que o distanciamento é importante, e que a exposição em espaços fechados, com muitas pessoas dividindo-o, é prejudicial por difundir o vírus mortal (como apontam os jornais paulistas no início de 2021, falando em relação ao aumento dos casos de COVID-19, evidenciados nas internações pela volta às aulas presenciais no começo do ano letivo), qual seria a função da educação enquanto local de promoção do pensamento científico? Como ter atividades normais seria um elemento de ajuda no enfrentamento desta cruel realidade, alcançando uma situação melhor futura? A educação deve permanecer num esforço de negação de si? Ou talvez deva abraçar a dor, a raiva, o luto pelas vidas perdidas e desgraçadas para uma transformação positiva.

Fala-se de protocolos; que eles garantirão a segurança das pessoas, que impedirão o crescimento da infecção. Não há possibilidade disso. Protocolos são concebidos a partir de uma análise científica das circunstâncias. Significa que preveem normas, a partir de análises da realidade geral. Geral significa que se aplicam para circunstâncias aplicadas a todos, a partir de determinados comportamentos, previstos para a coletividade. Geral e coletivo pode ser interpretado como nós.  Nas casas, no lazer, na vida social predomina a noção de que o eu é tido como mais importante e que deve prevalecer sobre o bem comum, sobre o nós. A ciência se constitui para fins de fazer com que protocolos existam em combinação com comportamentos coletivos para atingir a todos. Mas os protocolos estão sendo evocados como amuletos, como uma palavra mágica, como se fosse um pedido de “tempo a dois numa partida de taco”. 

Um outro fato importante: pensar em educação é pensar para além do corporativismo. É pensar em classe – não de aula – social! A prioridade, portanto, não deve ser vacinar primeiro quem trabalha na educação. Há prioridades todos os dias na nossa rotina. Muitas, talvez todas, tendo sido invisibilizadas.

Numa coisa a Rosane está certa, sem saber que está (malditas provas objetivas da nossa vida escolar!). São os profissionais da vida diária que impedem que a desgraça que nos abate seja maior. Merecem valor, bem como prioridade. Professores, muitas vezes também são médicos, outras tantas são juízes, são altos funcionários do funcionalismo público, ou são muitos milhares organizados em categorias. Defender a vacinação para uma parte da sociedade é mais fácil e socialmente aceitável por não agredir o sentimento de elite. Não ameaça o funcionamento da sociedade. Agora, o mesmo não ocorre quando falamos daquelas que são caixas e ajudantes de supermercado, de motoristas e cobradores de ônibus, metroviários, assim como os caminhoneiros, os policiais e os garis (os trabalhadores da limpeza urbana tem sido o mais severamente atingido em Belo Horizonte, como até os grandes jornais tiveram de expor no mês de abril). Tais profissionais, desprovidos de status profissional são aqueles que nos sustentam sobre seus ombros, impedindo que a crise se transforme em desabastecimento, em isolamento e em outras epidemias causadas pela sujeira. A eles devemos o fato de a situação não ser pior.

Educar, nestas condições é desapegar das nossas condições de detentores de um tipo de saber e aceitarmos sermos inseguros, de sentirmos medo e que, assim como nossos estudantes, não termos resposta para o que vai acontecer, mas que ainda assim nos preocupamos com elas e eles. Ser educador é aprovar com louvor toda a turma porque ela está viva. Não precisamos de gênios mortos, nem de mártires. Eles sempre existirão em tempo normal, sem pandemia. Alguém precisa dizer que o normal é dizer que não está tudo bem, que notas A, B, 10, ou Muito Bom, não vão servir de nada agora, porque o futuro é agora e agora não precisamos de pessoas que possam achar seu lugar no mercado, mas só de pessoas. Pessoas que saibam que o mais importante agora é que mais pessoas tenham amanhã, que tenham ar para respirar. Não é absurdo que pessoas não tenham casa, comida, segurança e nem ar?

Concordar com um modelo de ensino – remoto, híbrido ou presencial – nestas atuais circunstâncias em que a morte pode ser encontrada em qualquer família, generalizada, e trabalhar no interesse de fazer crer na possibilidade de acumular informação “útil para o futuro” é o maior mal que professoras e professores poderiam causar a estudantes. Precisamos estar integralmente ao lado dos estudantes, não julgá-los.

*Professor do IFRS e militante do MLC