Anne Campo
MINAS GERAIS – Em um país no qual atualmente residem cerca de 897.000 pessoas indígenas, de mais de 300 etnias diferentes, a invisibilidade social das pautas dos povos originários no Brasil beira o desprezo. Ora, se objetivamos mudar a ordem estabelecida – o descaso em relação à luta indígena e suas subjetividades – é preciso colocarmos luz nas questões sócio-históricas dessa parcela da população.
O Sistema Único de Saúde (SUS) atua em função da universalidade, igualdade, integralidade, equidade, intersetorialidade, direito à informação, autonomia das pessoas, resolutividade, epidemiologia, descentralização, direção única, e regionalização. Isso é importante pois significa que, apesar de seguir os mesmos princípios organizativos em todo o país, o SUS tem como função dirigir procedimentos específicos para as comunidades que se apresentem mais vulneráveis a riscos de saúde.
Tendo isso em vista, foi instituído no SUS, em 1999, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, gerido até 2010 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), e então transferido para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), devido a demandas do próprio movimento indígena. Esse setor do sistema de saúde pública vigora com a obrigação de “levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional”. (Lei 9836, Art. 19-F)
Entre as fundações voltadas para o funcionamento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, destacam-se os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis), que atuam em função da atenção básica nas aldeias, a partir de equipes obrigatoriamente compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, podendo receber o auxílio de outros profissionais em determinados casos.
Por mais que a importância do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena seja inegável, a realidade ainda não é o suficiente. As equipes lidam diariamente com um cenário precário de trabalho, desde a falta de insumos à escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs).
Um dos motivos disso é a centralização da gestão de alguns dos Dseis, como é o caso do Dsei de Governador Valadares, único responsável por todas as aldeias de Minas Gerais e Espírito Santo. Além disso, conforme a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), no fim de março deste ano, os Dseis foram inseridos em um projeto-piloto a ser realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro Pequenas Empresas (Sebrae), denominado “Empreendedorismo para a Vida”, que prioriza a capacitação para o empreendedorismo como principal ação de promoção à saúde mental da população indígena, sob a justificativa de que isso promove a autonomia e, consequentemente, o bem-estar desses povos.
Não a “justificativa” está equivocada, mas isso também entra em desacordo com a política de saúde vigente no país, realocando os recursos financeiros destinados à saúde indígena para um projeto que, na realidade, assemelha-se a um meio de inserção das aldeias nos moldes econômicos capitalistas do mercado de trabalho.
Assim, os povos originários estão sempre em alerta em nosso país, pois a esfera da saúde pública é apenas uma das diversas pautas da luta constante dessa parcela da população em prol de seus direitos básicos. Em tempos de pandemia e bolsonarismo, a situação é cada vez mais urgente e deve ser tratada como tal.