Julio Bernardo Ronchi e Felipe Fly
SÃO PAULO – A linguagem é o sistema de comunicação pelo qual o ser humano expressa suas ideias e emoções, orientada pelas visões de mundo e imposições da realidade em que o falante se insere; a língua desempenha um papel ativo no processo de reconhecimento das mudanças sociais, por meio da reprodução, e revela comportamentos, posicionamentos e pensamentos de quem fala. Ao falarmos da língua, assim como de todas as outras ferramentas sociais, de comunicação e manutenção da vida em sociedade, o fator identitário é uma peça importante para o reconhecimento de suas mudanças. A língua desempenha papeis que refletem e respondem às questões da sociedade, e pensar nela como este conjunto de reconhecimentos, reflexos e respostas é nossa consideração principal ao partimos para o estudo da linguagem inclusiva de gênero.
O Brasil é fortemente marcado pela desigualdade de gênero, sobretudo pela opressão do homem (cisgênero) sobre a mulher e, de acordo com o BID (Banco Internacional de Desenvolvimento), mulheres recebem salários cerca de 30% menores em relação aos homens no mesmo serviço, ainda que possuam níveis maiores de instrução. O IBGE aponta que 88% das mulheres empregadas realizam trabalhos domésticos antes ou depois do trabalho; em média, o dobro do tempo em comparação aos homens. Evidencia-se que, embora as mulheres exerçam as mesmas funções e trabalhem ainda mais que os homens, a remuneração privilegia a eles. Essa mesma contradição se materializa na língua quando dizemos: “o brasileiro é trabalhador”. A frase pretende generalizar a figura de quem mora no Brasil como pessoas que trabalham; no entanto, a referência é masculina, ainda que as mulheres estatisticamente trabalhem mais.
Por sua vez, a linguagem inclusiva de gênero busca promover o uso não-sexista da linguagem e incluir a identidade feminina no discurso e reconhecer as não-binária e, isto é, trata-se de um ato político de lutas identitárias cujas discussões são necessárias no campo linguístico, acadêmico e político. Isto posto, a linguagem inclusiva de gênero pode abarcar diferentes configurações para que se materialize nos atos comunicativos, e algumas alternativas têm sido propostas para promovê-la. Uma delas é o uso dos marcadores @ e X, pouco funcionais nos textos escritos, inadequados na oralidade e nada inclusivo quanto às pessoas disléxicas ou com visão baixa, por exemplo. Por isso, passou-se a defender a substituição das vogais temáticas –o e -a pela vogal –e, sistema conhecido como “linguagem neutra”. Esta prática do sistema -ile não é a única que se discute e se constrói como prática da linguagem inclusiva, também se utiliza termos genéricos (sem marcação de gênero) e a presença das duas marcações, masculino e feminino.
Como exemplo, tomemos a situação seguinte: uma professora entra na sala de aula, no primeiro dia de aula, e deseja recepcionar quem acaba de ingressar da escola.
– Masculino genérico:
Bom dia, alunos! Sejam todos bem-vindos!
– Uso dos dois termos (linguagem inclusiva):
Bom dia, alunas e alunos! Sejam bem-vindas e bem-vindos!
-Uso de termos genéricos (linguagem inclusiva):
Bom dia, estudantes! Desejamos boas-vindas!
-Uso do sistema -ile:
Bom dia, alunes! Sejam todes bem-vindes!
Essas alternativas têm sido adotadas em diversos contextos, especialmente no endereçamento a grupos de interlocutores plurais para denotar respeito e empatia pela pluralidade de identidades de gênero.
Ainda que a demarcação de gênero no português hoje reflita também a diferença de acesso a postos de trabalho como por exemplo “governante” e “governanta”, em que o masculino determina a administração estatal enquanto o feminino a administração da casa, línguas sem demarcação de gênero, como é o caso na Turquia, não garantem que a sociedade ainda não possua as contradições de gênero, vide o posicionamento do país em 130 de 145 no ranking de igualdade entre homens e mulheres de 2018 pelo Fórum Econômico Mundial.
Fica evidente que apenas a transformação da linguagem não garante um avanço concreto, que se dá através da luta organizada e diária para a extinção da desigualdade de gêneros, no entanto, muitos avanços já foram conquistados, tanto pelas mulheres quanto pela comunidade LGBTQIAP+ e é importante garantir que a linguagem acompanhe esse processo.
Conclui-se, portanto, que a linguagem inclusiva de gênero é, há um tempo, uma crítica e uma proposta; critica o genérico masculino usado para se referir ao “gênero humano”, ao apagamento da identidade feminina no discurso e à inexistência de uma linguagem neutra de gênero que inclua pessoas que não se identificam com a dicotomia feminino-masculino de gênero, e propõe alternativas linguísticas para o genérico masculino e para as marcações binárias de gênero. A linguagem inclusiva tem caráter de inclusão de todas as pessoas que fazem parte da classe trabalhadora e deve ser integrada às discussões da militância pela destruição do capitalismo e construção do socialismo.