Guilherme Freitas
Ao final do mês de julho foram divulgados os dados do número de inscritos do Enem de 2021 e o resultado é assustador para todos comprometidos com uma educação popular. O Enem deste ano será, sem dúvidas, mais elitista, mais branco e com o menor número de inscritos desde o período em que a prova permitiu um acesso ao ensino superior.
Apenas para uma noção inicial, o número de inscritos válidos – aqueles que de fato poderão fazer a prova – é de pouco mais de 3,1 milhões. Mesmo em 2020, quando vivíamos a pandemia de COVID-19 com muito mais apreensões, esse número foi de quase 5,8 milhões. Isto é uma queda brusca como até então não vista na história desta prova. Uma das principais razões para tal foi a decisão de não garantir a isenção da taxa de inscrição para quem se absteve de fazer a prova em 2020, uma escolha pensada a fim de impedir o acesso de camadas populares a prova, visto que o ano de 2020 foi também recorde no número de abstenções, quando mais da metade dos inscritos não compareceu, numa atitude consciente levando em conta os riscos da pandemia que vivíamos e ainda vivemos. Os números deste ano são próximos dos de 2005, quando pouco mais de 3 milhões de pessoas foram fazer a prova. A diferença é que naquele ano o Enem pôde, pela primeira vez, permitir um acesso ao ensino superior, por meio do ProUni. Desde então, o número de inscritos na prova tendia a crescer conforme cada vez mais ela também permitia o acesso a faculdades ou universidades pelo Brasil. Ou seja, em poucos anos vivemos um retrocesso de uma década e meia.
Os dados revelam que também os recortes sociais mudaram muito. A queda no número de carentes (que não podem pagar a taxa de inscrição) foi de cerca de 80%, ao mesmo tempo que o número de pagantes aumentou em quase 400 mil. Racialmente falando, os números de pretos, pardos, amarelos ou indígenas caiu de quase 64% para pouco mais que 56%, enquanto o número de brancos pulou de 34% para 41%. Ou seja, quando a fome dispara pelo Brasil, a casa grande, branca e elitista se faz ainda mais presente neste exame que deveria servir de acesso aos mais pobres à universidade.
É fato que no Brasil o ensino superior é um diferenciador social. A posse de um diploma é responsável por um abismo na renda mensal da população. Nesse sentido, entre o fim da década de 1990 até meados de 2010 o país viveu um importante avanço. Muitos são os relatos de pessoas que foram as primeiras de suas famílias a conquistarem um diploma ou a pisarem em uma universidade pública. Entre 2009 e 2019 o número de ingressantes em cursos de graduação passou de pouco mais de 2 milhões para mais de 3,6 milhões, fato que não pode ser ignorado. Entretanto, rapidamente percebemos que esse importante movimento logo se transformou num imenso e poderoso mercado. Se olharmos atentamente, vemos que das quase 2 milhões de matrículas de 2009, cerca de 1,6 milhões eram em instituições privadas, já em 2019 esse número era de mais de 3 milhões. A situação se agrava quando percebemos também que o número de matrículas em graduações a distância saltou de cerca de 300 mil para quase 1,6 milhões também entre 2009 e 2019. Esses dados traduzem a lógica de um mercado que busca, por meio do ensino a distância, diminuir seus custos ao mesmo tempo que aumenta não seu número de alunos, mas de consumidores. Apenas para confirmar o cenário aqui traçado, no ano de 2000 haviam 1180 instituições de ensino superior no Brasil, destas, 176 eram públicas enquanto 1004 eram privadas. Em 2019 tínhamos um total de 2608 instituições, das quais 2306 eram privadas e apenas 302 eram públicas. Ou seja, em menos de vinte anos as instituições privadas cresceram quase 130%, enquanto a rede pública cresceu apenas 71%. Assim, a rede particular continua dominando mais de 80% de todas as instituições e matrículas do ensino superior brasileiro.
Os números estão escancarados: após um pequeno momento em que o Enem cumpriu apenas um pouco dos seus deveres, de mudar a cor e a classe do ensino superior, o mesmo hoje é assaltado e tomado de conta pelas velhas elites que sempre usaram da educação para garantir sua distinção social. O próprio atual Ministro da Educação, Milton Ribeiro, demonstra isso ao dizer que “universidade deveria, na verdade, ser para poucos”. Ao mesmo tempo, suas palavras entram em ação quando os investimentos na permanência de alunos são cortados, obrigando os poucos estudantes de camadas populares a se afastarem de seus cursos, mesmo após um longo processo para passar nos injustos vestibulares.
Se o desmonte da educação é claro, também é notório a quem isso interessa. Aos que não podem entrar numa universidade pública, oferece-se todo um mercado de instituições que prometem um diploma rápido, desde que pago. O próprio governador de São Paulo, João Dória, após tanto se utilizar do Instituto Butantan como formas de publicidade para seu governo por meio das vacinas, agora planeja instaurar uma faculdade particular dentro da própria Cidade Universitária da USP, para permitir que o capital privado se beneficie de toda a estrutura pública da universidade já existente. A faculdade, no caso, foi criada pelos sócios do banco BTG Pactual, o mesmo do qual Paulo Guedes, atual Ministro da Economia, já foi sócio e fundador. Mais ainda, o próprio Paulo Guedes conta com sua irmã, Elizabeth Guedes, como Vice-Presidenta da Associação Nacional das Universidades Particulares, demonstrando que o interesse das instituições privadas pelo desmonte do ensino superior público encontra grandes cúmplices no alto escalão do próprio Estado.
O projeto desenhado está claro: para as elites, os benefícios de uma educação que, mesmo sob desmonte, permanece de qualidade através do financiamento do Estado, já para as camadas populares, um mercado a céu aberto que faz do sonho da educação o seu lucro.