A tomada da ciência: missão histórica do proletariado

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TEORIA E PRÁTICA. O conhecimento deve ser posto a serviço da luta pelo socialismo (Imagem: Arquivo)

O triunfo da revolução socialista e a fundação de uma nova sociedade demandam a superação da contradição entre o trabalho manual e intelectual. Não basta apenas que tomemos as máquinas, os meios de produção; o conhecimento também deve ser restituído às mãos dos produtores.

Thiago de Lima Ferreira
Rio de Janeiro (RJ)


OPINIÃO – Na sociedade brasileira atual são poucos os que desvalorizam a educação e a sua validade. Por mais que haja discussões sobre qual é a forma correta de construir essa educação, quais valores devem ser enfatizados ou esquecidos, todos podem atestar a efetividade e a força do conhecimento. Tirando aqueles que se destacam por herança, a educação pode proporcionar a chance de uma condição de vida melhor: um diploma de nível médio, técnico ou superior é um passaporte para uma situação empregatícia mais favorável do que para os que não o possuem. 

No entanto, apenas ter o diploma não garante o conhecimento, apesar de garantir a oportunidade. Luiz Gama, patrono da abolição da escravidão no Brasil, que conquistou judicialmente a própria liberdade e a de mais de 500 outros escravizados no século 19, era rábula, ou seja, um advogado autodidata, além de ser um dos poetas mais importantes do período. Gama não precisou de formação acadêmica formal, mas é certo que conhecimento não lhe faltava nem poderia faltar para fazer tudo o que fez. Conhecendo as leis e a oratória, Luiz Gama ganhou muitas causas e, conhecendo os caminhos das letras, escreveu obras tão importantes para a literatura brasileira. 

Mas, se Luiz Gama não tivesse tido a oportunidade de, aos 17 anos, ser alfabetizado por um estudante de Direito, nunca teria tido acesso a esses conhecimentos. A educação, para além do diploma, é a oportunidade de conhecimento, que os ricos senhores de escravos faziam questão de garantir aos filhos, mas negavam ferozmente aos negros escravizados. 

O conhecimento aos poucos clareia o mundo aos olhos de quem o possui, assim como dá o poder de mudá-lo. Para um leigo, o motor do carro é um amontoado de peças que faz as rodas girarem. Com esse nível de conhecimento é possível no máximo arrancar o motor para que o carro pare de andar, mas não se pode alterar ou consertar o motor de nenhuma forma significativa. Mas, se o leigo aprende que o carro precisa de água para resfriar o motor, já pode evitar que o carro superaqueça. Nesse mesmo momento, o amontoado de peças anterior ganha uma nova forma, pois o reservatório do radiador, onde se deve pôr a água para o resfriamento, toma sentido no complexo sistema de peças. Aos poucos, se o leigo aprofunda o conhecimento sobre as partes do motor, a relação entre as peças e a completude do sistema vai tomando sentido e também seu poder de atuar sobre o motor se amplia.

Da mesma forma era para Luiz Gama, que, mesmo com seu extraordinário gênio, precisou primeiro aprender a ler as letras do alfabeto antes das letras da literatura. Conhecimento sempre foi uma arma poderosa, mas seus fins nunca foram imparciais. Os textos mais antigos que temos hoje, que datam de 3.500 antes de nossa Era, na Mesopotâmia, são registros de comércio e administração do Estado. Um grupo de pessoas dedicado ao trabalho intelectual, ao desenvolvimento da escrita, da matemática, das ciências e da filosofia em geral, na sua origem foi sustentado pelo grupo dominante em prol dos seus fins – controle e exploração mais refinados dos homens e da natureza. Mas o uso subversivo desses conhecimentos sempre teve um único sentido, o da revolução social. Porém, esse controle em si, o conhecimento como a lógica principal do controle do mundo, só se concretiza do século 19 para frente.

Com a revolução industrial, a capacidade de alterar e conhecer o mundo acelerou rapidamente. Os saltos tecnológicos, que antes demoravam séculos e até milênios (invenção da agricultura, ferramentas de bronze e depois de ferro), passaram a acontecer em espaços curtíssimos e em níveis muito mais extremos. Em 1906, Santos Dumont pilotou seu 14-Bis, em Paris, o primeiro voo de um avião, e pouco mais de 50 anos depois, em 1961, o soviético Iuri Gagarin era o primeiro homem a ir e voltar do espaço.

Graças à URSS, Iuri Gagarin foi o primeiro ser humano a ir ao espaço (Foto: Arquivo)

O capitalismo impulsionou um rápido desenvolvimento da tecnologia e das forças produtivas. Como vimos, o conhecimento dá poder a quem o possui e o capital usa o conhecimento com um único objetivo: controlar tudo e todos em prol do seu fim único – o lucro. Com esse objetivo, o capital superou muitas barreiras do conhecimento, os tabus e dogmas; tudo está sujeito a ser desmontado e analisado peça por peça, da forma que for necessária, e qualquer peça pode ser jogada fora para que o sistema realize sua função. 

Esse salto, um quase triunfo do conhecimento, da claridade do mundo em todas as suas partes, a superação de todas as determinações e limitações em prol do lucro, é aqui mesmo eclipsado, pois esse movimento, a princípio libertador (o avanço extraordinário da tecnologia), é já contaminado por uma única limitação que subverte e distorce todo o conhecimento: o próprio lucro, pois tudo que não lhe serve é prontamente ignorado e descartado.

Muitas vezes, vemos tecnologia apenas como máquinas ou reações químicas, mas a tecnologia é simplesmente o conhecimento aplicado à realidade. Assim, no capitalismo, a natureza e o homem estão lado a lado para serem controlados, consumidos e destruídos. Da mesma forma que as indústrias agem sobre a natureza, usando-a para seus fins, também as instituições burguesas fazem com as pessoas. Igrejas, escolas, redes sociais, televisão, fábricas estudam e criam tecnologias para produzir os seres humanos nos moldes mais convenientes aos fins do capital e do lucro. A educação, no lugar de ser negada, como na época da escravidão, é agora exigida e imposta de forma mais elaborada. Em todos os detalhes, as pessoas são primeiro construídas para aceitar a ordem capitalista – na escola, na igreja e na família são docilizadas – para, em seguida, trabalharem duro e consumirem as mercadorias produzidas, sempre renovando o ciclo da acumulação capitalista.  

Para sustentar seu reino, o capital precisa do conhecimento. Antes, o fazendeiro e o artesão controlavam seu trabalho, possuíam o conhecimento passado de geração em geração entre os produtores e nessa linhagem desenvolviam as tecnologias. Mas o capitalismo não só acelerou o desenvolvimento do conhecimento, como também usurpou todo e qualquer controle sobre ele. Agora, o trabalho manual é cada vez menos autônomo; o operário, no campo ou na cidade, apenas opera máquinas que simplificam e dividem o trabalho em infinitas partes. Diante dos olhos do operário, todo o trabalho é um amontoado de processos, ele só conhece a sua parte, a sua peça. Aqui, não trata-se apenas das fábricas ou fazendas, mas todos os trabalhos manuais estão submetidos a essa lógica, dos caixas de mercado ao motorista de aplicativo; a máquina não é uma ferramenta de trabalho que o trabalhador domina, mas é a própria máquina, a própria tecnologia, que dita o trabalho do operário. 

Ao tirar o conhecimento das mãos dos trabalhadores, o capital também descola o sentido original do trabalho do processo de produção. Carros servem para o transporte, comida para comer e tetos para proteger da chuva: essa é a lógica do trabalho, criar as condições de vida para a sociedade. Mas, para o capital, a lógica do trabalho é só uma, a do lucro. Por isso, o sentido do trabalho não pode ser ditado no próprio processo, mas exteriormente. É nesse ponto que o trabalho intelectual alcança sua função plena. O trabalho intelectual é o esforço de desenvolvimento do conhecimento, mas o conhecimento submetido ao lucro, ignorando todas as outras determinações, toda a realidade que não lhe interessa. O princípio da ciência, do Direito e da filosofia foi por muito tempo a imparcialidade, mas essa posição é pura ilusão. Não há imparcialidade no capitalismo, especialmente no trabalho intelectual, que nasceu da posição mais parcial possível. Essa contradição entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, assim como a propriedade privada, é parte estruturante do sistema capitalista. O triunfo da revolução socialista, a fundação de uma nova sociedade, demandam a superação de tal contradição. No capitalismo, o trabalho manual e o intelectual são alienantes; essa estrita divisão em si apaga os dois lados da verdade, da realidade que determina o conhecimento e do conhecimento que muda a realidade.

Não basta apenas que tomemos as máquinas, os meios de produção; o conhecimento também deve ser restituído às mãos dos produtores, não só porque é arma eficaz na luta revolucionária, mas porque só assim se restitui à ciência seu sentido pleno e consciente, se supera a contaminação do conhecimento pelo capital e se funda um mundo claro diante dos olhos em todas as suas partes, em toda sua verdade.