No contexto da implementação do Sistema de Saúde Digital no Brasil, é importante considerar os investimentos dos recursos públicos que se fazem necessários para viabilizar a oferta de atendimento remoto, objetivando diminuir as longas filas de espera, descentralizar o suporte médico e viabilizar o acesso de pacientes situados em regiões distantes a uma equipe multiprofissional.
João Pedro Souza | Recife
SAÚDE – No compasso da evolução da medicina moderna, impulsionada pelo cenário desafiador da pandemia da Covid-19 em 2020, assistimos a uma crise sem precedentes no acesso à saúde no Brasil, que ultrapassou as fronteiras da tradicional telemedicina no setor privado. O que antes estava restrito a essa esfera específica de cuidados de saúde, expandiu-se para englobar uma série de serviços médicos virtuais e avançadas tecnologias. Esse movimento visava estabelecer um modelo de assistência, focado na promoção da saúde preventiva por meio de abordagens remotas. O desfecho dessa evolução culminou, ao término de 2022, na promulgação da abrangente lei federal de número 14.510/2022, que formalizou a prática da telessaúde e regulamentou sua implementação em todo o território nacional.
O Ministério da Saúde, recentemente, por meio de sua Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI), tem buscado expandir as redes de Saúde Digital no Sistema único de Saúde (SUS) em todo o país. Com essa finalidade, o órgão visa reforçar e ampliar a disponibilidade dos serviços de Saúde Digital em distintas áreas geográficas até 2030. A ação objetiva aprimorar o acesso aos cuidados médicos, especialmente em regiões remotas, viabilizando o acesso dos usuários a atendimentos especializados, mesmo à distância.
Contudo, em meio a essa perspectiva promissora, é crescente o interesse de participação da iniciativa privada, pois a lei atual deixa brechas. A corrida por lucros pode distorcer os objetivos originais da saúde digital, passando a se tornar um mercado exclusivo para empresas e startups do ramo da tecnologia, apresentando, como solução, os seus softwares com o objetivo de enriquecimento sob a saúde da população e perpetuando o modelo biomédico através das teleconsultas com os recursos exclusivos da telemedicina. Isso é algo que já vem ocorrendo nas principais regiões do país em que alguns municípios solicitam criações de modelos de inteligência artificial para preenchimentos de formulários médicos e acompanhamento de exames.
É fato que a privatização da saúde no Brasil tem se expandido em uma velocidade devastadora desde a adoção do modelo neoliberal por parte do Estado brasileiro a partir de 1990, criando um cenário de desmonte do SUS para tornar o acesso à saúde de qualidade como um privilégio dos que podem pagar por ele, sendo acelerado atualmente pela proposta do novo arcabouço fiscal, que limita os investimentos na saúde pública do país.
No contexto da implementação do Sistema de Saúde Digital no Brasil, é importante considerar os investimentos dos recursos públicos que se fazem necessários para viabilizar a oferta de atendimento remoto, objetivando diminuir as longas filas de espera, descentralizar o suporte médico e viabilizar o acesso de pacientes situados em regiões distantes a uma equipe multiprofissional. Porém, para que esse cenário de fato se concretize, é indispensável a consolidação da atenção básica à saúde nos municípios.
A estruturação sólida da atenção básica se constitui como o alicerce fundamental sobre o qual deve se edificar a realidade da saúde digital, dado que, na ausência de um modelo de atenção básica robusto e alicerçado em recursos públicos, toda a tentativa de se implementar o modelo tecnológico poderia encontrar-se em risco, especialmente no que se refere à efetiva implementação da telessaúde.
Outra limitação para a implantação da Saúde Digital no SUS é no que diz respeito ao contexto de territorialização dos usuários. É evidente que a restrição nos aportes de recursos ao SUS acarretará em um obstáculo significativo para uma adoção mais abrangente de um sistema de telessaúde na esfera da atenção básica nos diversos territórios do país. O desafio, portanto, será aplicar a telessaúde em um contexto de territórios com condições de vida específicas, levando em consideração a diversidade sociopolítica e econômica dos centros urbanos, além de lugares distantes, comunidades ribeirinhas, pesqueiras, quilombolas, indígenas, rurais e assentamentos em que a atuação dos profissionais de saúde ainda é limitada.
Além disso, um fator importante é a participação social como pilar fundamental e um dos princípios fundamentais do SUS. A sociedade precisa ser consultada e envolvida na construção do modelo de saúde que a telessaúde irá proporcionar, para garantir a construção coletiva do novo sistema de saúde digital e que contenha a privacidade, a proteção e segurança dos dados dos usuários.
É imperativo que sejam pensadas medidas rigorosas para garantir a proteção desses dados, através de modelos de sistemas de informações públicas fortalecendo o departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS), que foi desestruturado em governos anteriores para atender a agenda das grandes empresas de processamentos de dados do exterior. Com um DATASUS fortalecido e com investimento público, é possível que esses dados sensíveis dos usuários não sejam manipulados para fins comerciais e outras finalidades.
É fato que a saúde digital pode ser uma aliada de enorme potencial na busca por um sistema de saúde que seja tanto acessível quanto de alta qualidade para toda a população. No entanto, é imprescindível que se promova um diálogo abrangente acerca desse tema, considerando a complexidade territorial do país.
O objetivo primordial da implementação do sistema de saúde digital, que está sendo construído pela nova gestão do Ministério da Saúde, deve consistir primeiramente em fortalecer o acesso ao SUS, através da consolidação de uma base sólida na atenção básica, garantindo a participação social.
Enquanto nos deparamos com os interesses privados na esfera da saúde tentando um espaço no novo modelo por meio de empresas de tecnologia, é crucial reafirmar que a saúde representa um direito universal e precisa ser público, gratuito e de qualidade. A preservação deste princípio fundamental se torna indispensável, ressaltando que a privatização, por sua vez, não tem a capacidade de atender as necessidades primordiais em relação à saúde, nem de viabilizar a aplicação efetiva do modelo de saúde digital no contexto nacional dada a sua limitação de infraestrutura. É necessário defender um modelo de Saúde Digital que deve estar a serviço do SUS e a serviço da população brasileira.
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